Descobri que a insônia tem suas vantagens.
A principal delas é ter permitido que eu me desse conta de que meu problema não é morar no lugar errado, mas não viver no fuso horário certo.
Às 3 da madrugada, quando arregalo os olhos e o sono se vai para nunca mais, a Barra é um bairro civilizado.
A vizinha de cima não arrasta móveis. O de baixo não grita na varanda.
Os professores de tênis não urram a cada raquetada. Os de hidroginástica não se esgoelam nas piscinas para conseguir a atenção das velinhas tagarelas.
Crosfiteiros não flexionam os músculos ao som de música eletrônica nas quadras. Não há pagodeiros, fanqueiros e sertanejos ostentando chifres, bebedeiras ou peripécias sexuais nas churrasqueiras.
Crianças não se comportam nos parquinhos como Linda Blair diante do crucifixo do Padre Damien.
Os erês, os adeptos do grito primal, os pregoeiros (“Máquina de lavar velha! O moço compra!”) estão todos aconchegados nos braços de Morfeu — aqueles mesmos braços que se cansam de mim em poucas horas, e me empurram para a vigília.
Às 3 da madrugada, o mundo parece ter feito as pazes com a paz, e a harmonia que deveria permear o convívio entre seres humanos soa menos utópica.
Claro que há o zunir dos pegas na Avenida das Américas. E o chiller do centro empresarial, que zumbe ainda mais alto nas madrugadas. Mas é possível, nessa curta trégua, escrever o artigo para o jornal, esta “Opinião” para o blogue da Lu, ler e comentar alguns dos textos produzidos pelos participantes das Oficinas Literárias.
Por volta das 6h, quando clareou e saio com os cachorros, já teve início a invasão bárbara dos ruídos. Na academia do prédio, os marombeiros tonificam menos os músculos que as cordas vocais. As faxineiras chegam para a jornada de trabalho, em alarido e com os celulares tocando o paradão do louvor. Os piscineiros arrumam espreguiçadeiras e ombrelones, com o rádio em volume máximo.
Logo começa a sinfonia de marretas, martelos e maquitas. Os instrutores da hidroginástica repetem as aulas diárias do dialeto carioca (“Uúmm, duôishh, trêishh, quátruo, ciênquo, sêishh, sétchie, uôituo, nuóvie, déishhh!”). A vizinha de cima, qual Sísifo, retoma a empurração de móveis. O trânsito na Américas e o chiller do centro empresarial, intimidados, silenciam.
O que não foi feito até então — ler, escrever, revisar — agora só com janelas e portas fechadas, ar ligado no máximo, emissor de ruído branco, plugues de cera, protetores auriculares.
A ideia é que eu — que já estou no fuso horário de Portugal — aos poucos vá ganhando territórios mais a Leste, e em breve chegue ao ponto ideal, trocando o horário de Brasília pelo do Japão. Tudo bem que aqui seja impossível cochilar de dia, mas para isso é que servem a cadeira do dentista, a sala de espera da endócrino, o divã do psicanalista.
FAQ:
— Não, não dá para colocar janelas antirruído (teria que também rebaixar o teto e fazer um sobrepiso);
— Não, não dá pra rebaixar o teto e fazer o sobrepiso, ou o pé-direito ficaria com 2 metros;
— Não, meditação, ioga, mantra, melatonina, maracugina, pajelança, simpatia não funcionam comigo;
— Não, um míssil norte-coreano, que resolveria todos os problemas, não chega até aqui.