Até, pelo menos, meus 9 anos, achava que minha família paterna tinha origem russa. Meu tio-avô, o popular Adolpho Bloch, dizia-se russo, apesar de ostentar com orgulho o apelido de “Homem de Kiev”, dado por um de seus contemporâneos.
Quando descobri que eram todos ucranianos, da cidade de Jitomir (a 150 km da capital), fui confrontá-lo. Ele respondeu que Ucrânia era Rússia, que lá todos falavam russo, que a língua ucraniana era uma preciosidade de biblioteca.
Quando, dias atrás, ouvi, às vésperas da invasão russa, o presidente Putin dizer que a Ucrânia nunca existiu como estado, foi como se ouvisse Adolpho, com sua expressão perplexa.
Com o passar dos anos, tive oportunidade de estudar a questão e descobri que não era bem assim. A Ucrânia não era, originalmente, uma província da Rússia, mas o contrário: a Rússia é que nascera em berço ucraniano, o Estado Kievita, no século IX.
Pesquisando mais adiante, descobri que meu bisavô, o patriarca Joseph, tinha apego à aristocracia russa — diferentemente dos judeus de seu tempo, que, em inícios do século XX, viviam em zonas de exclusão paupérrimas, os “shtetl” (retratados por Chagall, ou em peças/filmes como “O violinista no telhado”), que eram como favelas nas franjas das colinas banhadas pelo rio Dniepper.
Acontece que o czar permitiu que uma família de judeus ucranianos, os Shapiro, imprimisse o “Tânia”, livro dos religiosos hassídicos, ortodoxos que pregavam a alegria, e não uma doutrina rigorosa.
Esse livro era do interesse do czar, pois acalmava as revoltas dos judeus que sofriam assaltos da polícia do Império, ou dos cossacos, que estupravam suas mulheres e roubavam seus poucos bens. Esses assaltos eram os famigerados “pogroms”.
Por sorte, Joseph habitava uma região próxima à dos Shapiro, que acabaram perdendo o monopólio da impressão, que foi estendido a mais pessoas, inclusive judeus. No início do século, Jitomir tinha 40 gráficas; uma delas era uma litotipografia a vapor, pertencente a meu bisavô, que imprimia invólucros de bala, rótulos, formulários.
Com isso, os Bloch ascenderam socialmente e ganharam proteção da polícia. Quando veio a revolução, e a maioria dos judeus, miseráveis, aderiu ao Bolchevismo, os Bloch estavam do outro lado da gangorra: eram os burgueses industriais. Assim, tiveram que fugir e chegaram ao Brasil, em 1922.
Eu me perguntava por que essa preferência pela Rússia. Sim, a cultura ucraniana da época era extremamente antissemita, regulava com o antissemitismo polonês e o húngaro, mas a Rússia (e seu império) em nada diferia.
Na realidade, a única diferença era que, ao contrário de Polônia e Hungria, a Ucrânia vivera todos esses séculos levando chumbo ora da Rússia, ora da Alemanha, ora da Polônia, em guerras sem fim. Portanto, a autonomia e a nacionalidade da Ucrânia jamais foram reconhecidas (exceto num curto período após a revolução) apesar de sua forte identidade cultural, de suas especificidades geográficas e da língua, que, de tempos em tempos, era proibida nas escolas.
Quando, após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, a Ucrânia firmou com a recém-criada Federação Russa um acordo no qual abria mão de seu arsenal nuclear em troca de reconhecimento irrestrito de sua soberania, prestei bastante atenção. Poucos anos depois, em pleno 2001, semanas após o 11 de setembro, eu estava em Moscou e, de lá, partiria para Jitomir numa viagem de 20 horas, em um trem que só tinha como passageiros eu, uma babushka e sua sobrinha. Tinha também o maquinista, que me olhava torto.
Depois, iria a Kiev, e lá estava quando os EUA invadiram o Afeganistão. Escrevi até um texto para O Globo, onde trabalhava, sobre o clima na capital ucraniana em relação a uma guerra que acontecia beeeeeem longe, a uns 8 mil quilômetros dali, embora meu pai advertisse, ao telefone, como um personagem de Dostoievski: “Você está no centro do teatro de guerra!”
Eu morria de rir, mas a graça acaba quando penso, hoje, no que seria estar em Kiev em 2022. Minha viagem à Ucrânia devia-se ao livro que eu estava escrevendo, “Os irmãos Karamabloch”, a conflagrada saga sobre minha família, lançada, em 2008, pela Companhia das Letras.
Nos intermináveis papos com meu pai, quando Putin já começava a se coçar para anexar a Crimeia, ele repetia o que Adolpho dizia: “A Ucrânia não existe”. Eu reagia: “Existe, sim, está lá, reconhecida, sacramentada, inclusive pela Rússia”. Ele insistia: “É uma fantasia”. Eu retrucava: “Não é, não”. Meu pai morreu em 2014. Deu no que deu. Não sei o que ele diria hoje, vendo a morte se espraiar pelo outrora chamado “Celeiro do Mundo”, como já foi conhecida a Ucrânia.
Meus sentimentos são mistos. Sou 100% a favor da Ucrânia livre e independente, 100% contra a invasão russa. No entanto, não tenho em mim um especial fervor pelo que significou a Ucrânia (e muito menos a Rússia) para os judeus, massacrados por séculos, impedidos de exercer profissões, de ir a Moscou, de frequentar teatros. Os algozes “primários”, no primeiro terço do século, não eram os ucranianos — eram os russos. Ora, no fim das contas, eram ou não eram todos russos? Só que não.
Meu coração ferve pelo Brasil, pelo samba, pelo Botafogo e pelo pertencimento ao povo judeu, mas sem nacionalismos de ambas as partes. O nacionalismo é o que de pior a humanidade carrega.
Sou leitor voraz da literatura russa; Stravinsky é um dos meus ídolos, Tarkovski é um semideus. Não acho que nenhum povo seja pior que o outro. A Alemanha é hoje um farol para a democracia europeia. Amanhã, pode deixar de ser, e a Rússia iluminar-se, e a Ucrânia voltar a respirar em sua justa luta por autodeterminação. Os problemas não são deste ou daquele povo; o problema é da espécie. Essa, que destrói o que constrói, e não trabalha para as gerações vindouras, mas só pelo acúmulo e pela vertigem do poder.
Arnaldo Bloch é jornalista.