Não há uma resposta exata sobre o que é ser uma pessoa trans. A transgeneridade é plural e diversa, o importante é ouvirmos essas pessoas. Apesar de eu não sofrer com tantas das dificuldades da maioria das pessoas trans e travestis no Brasil, a maior parte da população ainda enfrenta desafios para entrar no mercado de trabalho, por ausência de um ambiente saudável, que assegure direitos como uso de nome social, pronomes tratativos, falta de representação em cargos de liderança ou de um preparo dentro desses cargos. Às vezes, também falta uma sensibilização sobre essas existências.
Um exemplo recente sobre isso é o episódio do “BBB 22”, quando alguns participantes insistiram em tratar a Lina (Linn da Quebrada) por ELE mesmo tendo um ELA tatuado na testa. Ver a Linn passando por essa situação, obviamente me incomodou porque entendo a sensação que isso nos traz — já passei por isso mesmo depois de ganhar exposição na mídia. Comecei a tomar hormônio feminino há seis anos e, até hoje, tem pessoas que me tratam no masculino, em trabalhos de moda e como atriz.
Muitas vezes, infelizmente, as pessoas ainda usam do sofrimento de pessoas trans e travestis por sensacionalismo. Essas pessoas nos querem em seus projetos, mas nem sequer dão educação básica e referências para os colaboradores que são nossos colegas de trabalho. Para quem é cis, branco e hetero, o racismo, a transfobia e a gordofobia sempre vão ser um ‘mimimi’ porque eles não passam por esse tipo de coisa e não vão ser assassinados por serem assim. Se as pessoas são transfóbicas, racistas ou gordofóbicos em pleno 2022, é porque querem continuar propagando essa estrutura, e não porque não sabem.
É necessário termos espaço porque, quando o grande público nos vê sendo amadas, respeitadas e construindo histórias fora da marginalidade, fortalecemos esse imaginário. Isso nos motiva a continuar em movimento, buscando reafirmar nossa humanidade e dignidade na sociedade. Por isso, o mês da visibilidade trans e travesti é tão importante.
Meu processo de aceitação foi muito natural, até por ter a minha tia (Roberta Close) como grande referência de força, mas o que mais admiro é a coragem dela. Ela foi fundamental para eu me reconhecer, entender que nossas existências são políticas e que historicamente estamos construindo um trajeto que reivindica dignidade. Conviver com ela, de alguma forma me libertou de algumas angústias e inquietações porque também me fez ter contato com pessoas LGBTQIA+ desde cedo, nas reuniões de família, fora as interações com os grupos de estudos de gênero na faculdade. Então, conforme fui procurando e trocando, eu me identifiquei e me fortaleci mais.
Muita coisa mudou e vem mudando na minha vida, em todos os sentidos. Fisicamente, as maiores mudanças foram na minha pele, que ficou mais macia e a redistribuição nas coxas e quadris. Sobre relacionamentos amorosos, para nós trans, travestis, transexuais, isso ainda pode ser uma questão, pela grande objetificação, hipersexualização e a fetichização — muitos homens se interessam, mas se afastam quando percebem nossa condição; depois, escondidos, nos procuram novamente. Apesar disso, estou aberta para me relacionar, mas não exponho tanto a minha vida pessoal.
Os maiores problemas que tenho que enfrentar ainda são o preconceito, julgamentos, críticas e a transfobia. Coisas básicas, como frequentar a universidade e meu trabalho, foram desafiadores, pois ainda somos tratadas como se fôssemos descartáveis por muitos conservadores e retrógrados. E, com certeza, sou privilegiada por ser branca, alta e magra, o que me ajudou a chegar às passarelas e TV, além de ter o apoio da minha família, o que me deu muita força para guiar minha transição e sonhos.
Eu acredito plenamente que qualquer tipo de representatividade seja positivo, inclusive, espero, cada vez mais, ver pessoas, marcas e empresas sendo abertas a abraçar sem medo a comunidade trans com compaixão e respeito, celebrando nossas vitórias e conquistas. Ainda enfrentamos muita ignorância; às vezes, o preconceito é velado — e é desafiador. Só o conhecimento vai nos libertar, e trazer a evolução.
Muitos contratantes querem ter trans em seus projetos, mas precisam se conscientizar da importância de, primeiramente, dar educação e referências para todos os envolvidos nos respeitarem, se retratarem e assimilarem o que é ter pessoas trans ocupando esses espaços de direito e a importância de nossa saúde mental. A maior parte das trans e travestis do Brasil ainda vive em situação de vulnerabilidade social, política, econômica e muito estigmatizada; então precisamos criar mais oportunidades.
Somos o país que mais mata pessoas trans e travestis do mundo e, infelizmente, vemos os conservadores na cena nacional e essa onda tradicionalista crescente. Porém, prefiro acreditar e tenho expectativa de que isso possa mudar. Vemos a Erika Hilton como vereadora mais votada no Brasil (por São Paulo). Estamos, cada vez mais, nos articulando e mandando um recado para as estruturas de poder.
A carioca Gabrielle Gambine, 23 anos, é modelo e atriz. Fez sua estreia na telinha em “Verdades Secretas 2”, da Globoplay. Sobrinha de Roberta Close (Roberta Gambine Moreira, transexual e musa dos anos 1980), começou a carreira aos 18 anos, por incentivo de amigos. É representada pela Mix Models, de Pedro Bellver e Wellington Vieira.