Não quero aqui fazer nenhum tipo de proselitismo religioso, mas preciso pontuar que para nós, adeptos das religiões de matrizes africanas, assumir as nossas confissões religiosas em público é um ato político e de resistência cotidiana. Por isso, em memória da Yalorixá Gildásia dos Santos, carinhosamente conhecida como Mãe Gilda de Ogum, morta em 21 de janeiro no ano 2000, vítima de intolerância religiosa (a data foi criada em sua homenagem), quero aqui começar os meus brevíssimos apontamentos dizendo “Eu sou de Axé!”. E ao dizer essa pequena mas potente frase, acredito que provavelmente boa parte da sociedade brasileira que não vislumbra a possibilidade da promoção da tolerância religiosa poderá estar se perguntando qual o sentido e valor da minha afirmação.
Pois bem, em um país que ainda vive sob a glorificação de um passado colonial, que acredita vivermos sob uma democracia racial, que minimiza os casos de intolerância religiosa e de racismo, assumir-se adepto das religiões de matrizes africanas é um ato político e de resistência cotidiana. Resistências essas que vêm sendo fortalecidas, ao longo dos séculos, pelos movimentos sociais organizados e principalmente por lideranças religiosas, de várias denominações, que buscam fortalecer o diálogo inter-religioso e a luta antirracismo.
Sim, pois não podemos jamais nos esquecer que intolerância, racismo e preconceitos são as três pontas entrelaçadas dentro das construções e do forjamento da sociedade brasileira. Um entrelaçamento tão profundo que, por vezes, são quase imperceptíveis as distinções. Obviamente que, no Brasil, a intolerância religiosa e o racismo são braços do mesmo corpo da estrutura social colonial! Estrutura essa que é cotidianamente fortalecida pelo negacionismo social, político e econômico que ainda projeta e vislumbra a pseudoideia de democracia e laicidade no Brasil.
Acredito que o caminho para a tolerância é um processo a longo prazo, pois infelizmente a intolerância religiosa, assim como o racismo e o preconceito, está na base das construções das relações sociais no Brasil. Entretanto, é possível vislumbrar esse futuro a partir do momento em que as autoridades públicas promovam o Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, escrito pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) em parceria com o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas(CEAP), que, até o presente momento, não foi implementado.
Digo isso porque, como bem sabemos, constitucionalmente, o nosso Estado é laico, mas nós sabemos que, na prática, existe um abismo gigantesco entre o que prevê a Constituição e as promoções governamentais. E o Estado brasileiro não tem os seus olhos voltados para medidas concretas, que possam promover ações efetivas em prol do diálogo inter-religioso, para a tolerância e para a equidade religiosa. Por isso, na data em que comemoramos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, 22 anos depois da morte de Mãe Gilda, almejo mais tolerância, respeito e equidade religiosa.
Ivanir dos Santos é babalaô, professor e orientador no Programa de Pós-graduação em História Comparada pela Universidade Federal do Rio (PPGHC/UFRJ) e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR).