Não, este não é um texto sobre nutrição, sucos detox ou máscaras antienvelhecimento.
Também não traz nenhuma receita de guacamole ou churrasco natureba.
Tampouco é mais uma daquelas histórias em torno de criaturas muito diferentes que se apaixonam, e têm que lutar contra os preconceitos de uma sociedade retrógrada e especiefóbica, para a qual uma melancia nascida ao rés do chão jamais poderá almejar as alturas de um abacateiro.
Etimologicamente, abacate e melancia são ainda mais díspares. Melancia vem do árabe “balanci”, que não é mais que a cidade espanhola de Valência. Em espanhol, se chama “sandía”, de onde derivou — não me pergunte como nem por quê — a palavra “sandice”. Abacate é o aportuguesamento de āhuacatl, que em náuatle (língua de povos nativos do México e El Salvador) designava tanto a fruta quanto… o testículo. O que é um exagero — e uma sandice.
Pois gosto de melancia e de abacate, e não apenas pelo paladar, mas como metáforas.
Verde por fora, vermelha por dentro, a melancia já foi metáfora de hipocrisia política. Abacate nunca foi metáfora de nada — a não ser da pujante autoimagem de povos pré-colombianos.
Concretamente falando, a melancia é 95% água e 5% semente. O abacate é 30% gordura e — a julgar pelos últimos que comprei — 70% semente. Aí é que finalmente essas duas frutas se encontram e justificam este texto.
Cada uma delas fez uma escolha evolutiva. Não uma escolha pensada, com prós e contras bem medidos, mas “Pelo processo divino / Que faz existir a estrada” (como escreveu Fernando Pessoa) seguiram rumos opostos.
A melancia tem centenas de sementes; o abacate, uma só. Com centenas, e pequeninas, a melancia apostou na quantidade: havendo tantas, ainda que muitas se percam, alguma há de vingar. O abacate pôs todas as suas fichas num caroço único, imenso, inescapável.
A melancia foi na base do “se colar, colou”; o abacate, no “ou vai ou racha”.
Com 500 sementes gigantes, a melancia seria um fracasso de público e de crítica. Com uma sementinha mixuruca, o abacate amargaria um fiasco completo.
Afetivamente, sou melancia. Já cometi o erro de ser abacate num relacionamento — para nunca mais.
No gosto musical, sou melancia desde criancinha; no literário, abacate até morrer.
Política e eticamente, abacate total. Nas demais certezas, melancia. Porque em certas questões há que estar por inteiro, com um núcleo duro, cláusulas pétreas; em outras, fragmentado em mil possibilidades.
Arquitetura foi uma escolha melancia: é o lugar, por excelência, de gente com muito talento e nenhuma vocação. Dali poderia ter saído designer (como o Fernando Campana), cineasta (como Fernando Meireles), poeta (como Chico Buarque), compositor (como Arrigo Barnabé e Tom Jobim), humorista (como Falcão e Zacarias), escritor (como Milton Hatoum). Ou até como arquiteto, que foi o que aconteceu.
Da Psicologia — escolha abacate (e dos graúdos) — só poderia sair psicanalista.
Na juventude, tive uma camiseta que mostrava Freud carregando uma régua T, e abaixo se lia “Psiquiteto”. Hoje, menos pretensioso, talvez a legenda fosse “Melancate” ou “Abacancia”. Algo com 95% de água e 30% de gordura, rasteiro e altaneiro, que vai bem com sal ou com açúcar — ou não precisa de nenhum dos dois. Que só se mostra por inteiro quando partido ao meio, e melhor ainda quando fatiado. Ora com mira de esnáiper, ora atirando para tudo quanto é lado.
Ilustração: Sydney Michelette Jr.