Diante do que já foi contado sobre a história da minha família, cujo pano de fundo é também a história política do Brasil, quero provar que a minha avó, Neusa Goulart Brizola (1922/1993) não foi uma coadjuvante, e, sim, uma mulher submetida a muitas provas, sempre corajosa e ativa. Estou iniciando o projeto de escrever o seu perfil biográfico “Neusa Goulart Brizola, O Protagonismo invisível das Mulheres”, a ser publicado pela Letra Capital Editora.
Grande parte das mulheres não aparecem nos livros nem nos filmes. E muitas vezes, invisíveis e esquecidas — como essas que, na pandemia, sofrem violência, confinadas com seus agressores na quarentena, que escancarou essa cruel realidade. Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Datafolha revelou que 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual em 2020. Portanto, a minha inspiração para escrever sobre a vida da minha avó Neusa foi constatar que as mulheres aparentemente invisíveis vão crescendo à medida que se passa a conhecê-las melhor.
A escolha da capa do livro se deve por ser a cor que identifica os movimentos feministas, por representar a luta sufragista e a Women’s Social na Political Union, uma organização militante que lutou pelo voto feminista no Reino Unido, entre 1903 e 1917.
Minha avó nasceu em uma família de ricos estancieiros, lá no fim do Brasil. O seu irmão, o ex-presidente João Goulart, brigava com ela para que não namorasse militares. Ela era considerada namoradeira e casou-se aos 28 anos, idade avançada para a época, em que as moças se casavam bem mais jovem. Ela preferiu cursar o Normal na capital, dirigir o seu carro e acompanhar Jango nas festas e na política, como militante.
Foi, em uma reunião da ala jovem guarda do Partido Trabalhista Brasileiro (PDT), que ela conheceu Leonel de Moura Brizola (1922/2004), que exercia seu primeiro mandato de deputado estadual, colega de bancada do cunhado e estudante de Engenharia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Casaram-se em 1950, tendo Getúlio Vargas, amigo da sua família, como um dos padrinhos. Foi também primeira-dama na prefeitura de Porto Alegre. A união com Leonel, que era assim que ela o chamava, durou 46 anos. Diziam os amigos que “Dona Neusa era a Casa Civil de Brizola”.
Uma mulher que teve de partir para o exílio sozinha no Uruguai, com os três filhos porque, com a deflagração do golpe, Brizola teve que se esconder. Quando pisou no aeroporto de Montevidéu, uma corajosa Neusa denunciou a ditadura militar para a imprensa uruguaia que a aguardava com os microfones em punho. Assim era ela: uma moça refinada, elegante, discreta, em uma sociedade muito machista, e que entrou na história entre o irmão e o marido e de tudo participou ativamente, embora invisível.
Hoje, eu, sua neta e parlamentar, em pleno século XXI, ainda vivencio diariamente as muitas violências contra as mulheres, explícitas ou veladas. Nós, parlamentares, continuamos em posição desigual em relação aos espaços de poder ocupados pelos homens e não são bem-vindas ao jogo político. Há uma prática de interromper nossa fala e, quando discursamos em tom enfático, nos acusam de “nervosas”. E existem casos comprovados de que não estamos seguras nem no plenário.
Portanto, causa indignação ver a movimentação na Câmara dos Deputados para alterar a Lei de Cotas de Gênero. Querem reduzir de 30% para 10% a exigência de candidaturas femininas nas eleições, sob o pretexto elas-não-se-interessam-por-política. Tanto interessam que são mulheres cerca de 45% das pessoas filiadas a partidos políticos. A Lei de Cotas é uma conquista social. O justo é buscar a paridade de direitos no parlamento brasileiro. Apesar de as mulheres constituírem 52,5% do eleitorado nacional, hoje ocupamos apenas 16% da Câmara dos Vereadores, 15,3% das Assembleias, 15% da Câmara dos Deputados, 12,9% do Senado. O Brasil está na lanterna do mundo, na 142ª posição no quesito paridade de gênero no parlamento, entre os 193 países analisados pela ONU em 2021.
Apesar da posição vulnerável das mulheres em um contexto social misógino e machista, a atitude de denunciar a opressão é a medida mais eficaz para combater assédios sexual, moral e outras violências. No Brasil, é alarmante o número de mulheres assassinadas, espancadas e estupradas. Em contrapartida, está aumentando o número de mulheres que denunciam seus agressores. Se mulheres estão denunciando os assédios e agressões sexuais que sofreram e sofrem, é sinal de mudança cultural produzida por séculos de luta pela emancipação feminina. Não é fácil denunciar um agressor porque cada caso envolve muitas circunstâncias. Mas quando uma mulher denuncia, faz valer seu direito ao respeito e à inviolabilidade do seu corpo.
Em muitos momentos lembro da minha avó, quando eu estava às voltas com o projeto de lei (PL 173/2015), sobre a amamentação em empresas no estado do RS, era dela que eu lembrava; quando leio sobre as estatísticas citadas por mim acima, penso nela também; quando ouço qualquer história revoltante com o sexo feminino, ela é a primeira que me vem à cabeça. Daí é que tiro forças para o livro sobre sua vida.
Juliana Brizola é deputada estadual RS (Líder da bancada do PDT na Assembleia Legislativa do RS, ALERGS), graduada em Direito e mestre em Ciências Criminais.