A decisão tinha sido tomada semanas atrás, mesmo quando, sob ameaças que punham minha integridade física em risco, decidi que continuaria meu trabalho na Prefeitura do município de Angra dos Reis.
O ano era 1989, e desde que tomadas às devidas medidas legais para efetivamente proteger, manguezais e demais ecossistemas da baía de Ilha Grande — que vinham sendo degradados por conta da faminta especulação imobiliária —, as ameaças para com os que se opunham e inviabilizavam a degradação, ocorriam de forma sistemática.
Mas essa é outra história.
A tal decisão dizia respeito ao replantio das margens da Lagoa.
Lagoa que, desde minha infância, estava associada basicamente às frequentes mortandades de peixes, aos parques de diversão que se localizavam em suas margens e na anual Feira da Providência. Essa tinha sido minha relação com a Lagoa até então.
No entanto, naquela manhã, tudo mudaria — para sempre.
Coletei no manguezal da Tararaca, em Angra dos Reis, doze arbustos de mangue branco de uma área que tinha sido degradada e na qual a vida daquelas mudas estava por um fio.
Transplantei como havia atentamente lido nos inúmeros trabalhos científicos que, desde 1988, eu vinha colecionando a respeito de como recuperar esse tipo de vegetação tão peculiar e transportei as mudas para as margens da Lagoa.
Era um sábado de manhã, quando abri a porta traseira da Marajó, o meu primeiro manguemóvel, e fui tirando uma por uma as mudas do interior do carro.
O primeiro trecho selecionado seria o localizado quase em frente ao Parque da Catacumba. O local escolhido para o primeiro experimento se deu em virtude da facilidade de estacionamento do carro e posterior acesso às margens.
Devidamente preparadas, plantadas e espaçadas com todo o cuidado milimétrico, como indicavam os trabalhos consultados, fui indagado por um médico o que eu fazia com aquelas mudas.
Expliquei orgulhoso que era um experimento que visava adequar ao Brasil as técnicas de recuperação de manguezais desenvolvidas em outros países. Aproveitei para explicar a importância do manguezal, para que servia sua existência, seu funcionamento, sua degradação criminosa, etc., etc., etc.
Esse senhor passou a ser, por um bom tempo, um observador dos primeiros esforços de plantio. Infelizmente há muito tempo não o vejo mais.
Daquela manhã até hoje, passaram-se 32 anos, caracterizando aquele primeiro plantio de doze mudas num dos projetos ambientais mais longevos relacionados com a recuperação ambiental na cidade do Rio de Janeiro.
Naquela lagoa que era tida como caso perdido em termos de mortandade de peixes, além de recuperar progressivamente os manguezais de suas margens, o Projeto Manguezal da Lagoa atuou efetivamente no combate aos lançamentos generalizados de esgoto, o que, em última análise, mostraram-se, após três décadas, ser um dos principais gatilhos ambientais, provocadores dos frequentes genocídios ambientais.
Mas essa também é outra história.
Fato é que, com a renaturalização das margens da Lagoa, junto da vegetação, voltaram velhos conhecidos que andavam sumidos há décadas daquele ecossistema.
Acompanhando, por coincidência ou não, o que indicava a bibliografia, após dez anos de projeto, isto é em 1999, recebi de noite um telefonema me alertando sobre a visualização de pintos pretos nos manguezais da Lagoa. No dia seguinte, segui para saber quem eram meus novos “inquilinos” e descobri que eram os frangos d´água!
Após esse feliz encontro, tantos outros ocorreram nessas três décadas, por conta do caranguejo arborícola marinheiro, caranguejo chama-maré, caranguejo-guaiamum passeando na ciclovia, socós, socozinhos, socós-dorminhocos, marrecas-toicinho, marrecas-irêrê, lagartos- teiú, capivaras e, mais recentemente, após setenta anos de ausência, os colhereiros fizeram um pit stop na Lagoa.
Portanto, num lento trabalho em termos humanos, mas num piscar de olhos em termos ambientais, progressivamente o incremento da biodiversidade vai se materializando numa lagoa eminentemente urbana e se consolidando com a presença dos manguezais e a melhoria da qualidade das águas da Lagoa, que ainda têm um longo caminho a percorrer em seu delicado e sempre vulnerável equilíbrio. Mas, sem dúvida, os primeiros e sempre difíceis passos já foram dados.
Certamente, a Lagoa e sua história recente de recuperação são um modelo prático a ser seguido no sentido da recuperação de outros grandes passivos ambientais da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, como o sistema lagunar da Baixada de Jacarepaguá e as baías de Guanabara e Sepetiba. Maiores em escala, mas com as quase mesmas características em termos de causas, consequências e contextos históricos e culturais de degradação.
O próximo passo natural na Lagoa é a materialização do Bioparque da Lagoa, onde, após as devidas e obrigatórias consultas e adequações junto aos setores interessados da sociedade como do poder público, poderemos mostrar que o desenvolvimento econômico de verdade só acontece com o respeito e a proteção ao ambiente. Nesse modelo, ganham manguezais, lagoas, suas floras e faunas, ganha a biodiversidade, ganham o pescador, os proprietários de quiosques e demais comerciantes que vivem do comércio local. Ganha a qualidade de vida de toda a sociedade, ganha a cidade do Rio de Janeiro.
Para a realização desse sonho de renaturalização das margens da Lagoa, pelo Projeto Manguezal da Lagoa, contei com o apoio de muitas pessoas: dos amigos e amigas biólogas que vinham plantar mangue comigo, da turma da Comlurb que, mesmo durante as mortandades não arrancava minhas mudas ainda pequenas das margens, da Faculdade da Cidade que, sem dúvida, por meio de seu apoio por mais de uma década, possibilitou o salto dos plantios, pelas diversas autoridades estaduais e municipais que apoiaram ou viabilizaram apoios à iniciativa e da imprensa que, após a primeira matéria, em janeiro de 1990, pelo Jornal do Brasil, alternou-se por meio dos diversos meios de mídia, acompanhando todo o processo, talvez o mais bem registrado pelos meios de comunicação em nosso estado.
Apesar de nunca terem entrado num manguezal e pouco saberem do que se tratava o ecossistema inexistente na Itália, meus pais, italianos, sempre apoiaram a empreitada do jovem filho biólogo, enrascado e ameaçado por sua vontade de proteger os manguezais. Numa única vez e muito rapidamente, meu pai visitou o trabalho nas margens da Lagoa, sempre preocupado, se tamanho esforço pudesse vir a não dar em nada. Mesmo sem entender direito a importância dos manguezais e da luta em sua defesa, nunca em tempo algum, negaram-se a dar apoio ao filho que produzia as mudas de mangue negro e vermelho dentro do apartamento em plena Copacabana.
Sem dúvida alguma, minha relação com os manguezais e com a Lagoa vai muito além do aspecto meramente técnico ou científico. A coisa é bem mais complexa do que isso.
Nos manguezais da Lagoa, reencontrei Maria Lúcia, chorei a morte de meus pais, apresentei minhas filhas ao mangue branco, vermelho e negro, pedi por minha saúde e, aos 32 anos de serviços, agradeço por ter encontrado sentido em minha profissão de biólogo: proteger e recuperar.
Essa é apenas parte da saga, que ainda tem muitos capítulos adiante.