O título de hoje é roubado de uma crônica da Martha Batalha. Ela termina dizendo que “… minhas lembranças não se redimiram. São como a Itabira de Carlos Drummond, resumida a uma fotografia na parede. Coisinhas de nada, diante do monte de vida. Mas como doem”.
Minha Itabira se chama Unaí.
Tem, em comum com a do Drummond, mais que o nome em tupi — a pedra que brilha (itá + byra) e o rio preto (una + y). Uma com “Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas”; a outra com cem por cento de poeira nas ruas, cento e vinte por cento de poeira em cada poro.
Unaí não é uma fotografia na parede, mas uma caixa cheia delas. Em todas, o ar seco do sertão, o pó em suspensão, o silêncio das paisagens sem horizonte, um calor de trincar tartaruga. Mas está retratada com mais fidedignidade nas fotos que nunca foram feitas, e cujos negativos a memória já começou a cobrir de fungos e arranhões.
Numa delas se vê uma rua, como todas as outras, descalça. Mais que isso: coberta de cascalho. Uma rua sem árvores (não há sombra), sem postes (não há luz). De frente para o nada, uma casa imensa, com grandes portas de vidro e um jardim sem flores (há ali um algodoeiro enfezado, que não reage às regas). No quintal que quase se perde de vista, pés de manga, uma horta, uma amoreira que às vezes amanhece carregada de mandruvás, um mandiocal.
Ali, a água é retirada da cisterna, com um balde amarrado à ponta de uma corda. A geladeira é uma caixa de isopor (o gelo vem da fábrica de picolé, que tem gerador). Quem também tem gerador são os freis do seminário um pouco adiante — aqui, nessa casa imensa, a luz é de um lampião a querosene e de velas dispostas em pires. Uma noite, minha irmã deixará a vela sobre a mesa e provocará um incêndio — nossa mesa de fórmica guardará, até ser descartada em alguma mudança, essa cicatriz.
Outro dia quis saber se ainda existem a casa imensa e seu jardim. O Google Street me levou até a rua, agora asfaltada e estranhamente mais estreita. Encontrei o seminário, tão menos imponente. O ginásio na esquina, não mais chamado Rio Preto, não mais pintado de verde. Mas no lugar da casa imensa havia uma casa comum. Tinha um pequeno jardim frontal, prosaicas portas de vidro. Não era uma casa imensa: era uma casa em outra escala. Espremida entre construções que não estavam lá quando a deixei para sempre, na certeza de que ela e eu permaneceríamos do mesmo tamanho.
Dói ver na tela uma casinha simples, sem parentesco com o vasto lar do passado. Sem meu avô no quarto da frente, a sala de visitas decorada com flores secas do serrado, o quarto dos meus pais com os corações de Jesus e Maria vigilantes à cabeceira, o quarto com as quatro camas dos quatro irmãos (o caçula ainda no berço), a cozinha de dentro, a cozinha de fora, o chuveiro espetado no quintal para amenizar a canícula das tardes, a garagem grande demais para o fusca onde cabíamos todos, suarentos e entorpecidos pelo calor.
A imagem do Google Street não mostra o vira-lata que, depois de destruir o rádio e devorar um processo, meu pai abandonou numa estrada. Não mostra a primeira televisão — quando a luz chegou — virada para a rua, e os vizinhos empoleirados na mureta vendo conosco o homem chegar à lua, Carlos Alberto levantar a Jules Rimet em 70. Não mostra o morto abandonado à nossa porta, uma madrugada. As brincadeiras com os revólveres do meu pai — que não se transformaram em tragédia porque não tínhamos força para apertar o gatilho (eu bem que tentava).
Não mostra, principalmente, o dia da mudança — em que eu, que tanto amava as mangueiras, o algodoeiro, o pé de amora, me despedi deles quebrando seus galhos, arrancando suas folhas, abatendo-os a pauladas, para que, depois de mim, não frutificassem para mais ninguém, não fossem senão meus, na minha memória.
Unaí é esse amontoado de cenas envolvendo amor e morte, vida e perda, calor e abandono. É um filme que ainda passa no cinema da Rua Grande — que só existe quando lembro. Dói de vez em quando, como as lembranças que começam a adormecer, cansadas de tanto doer.