Pretendia abordar as alegrias que chegaram com as medalhas das Olimpíadas e a tristeza do incêndio da Cinemateca, enquanto relia o artigo inspirador “Madrugadas”, de Dorrit Harazin, em O Globo dessa segunda (02/07), quando ela disse “nesta semana, fomos felizes enquanto dormíamos ou sonambulávamos. Duro foi acordar para a rotina indigesta onde se matam fatos e a verdade, além de saber da tragédia da Cinemateca”.
A temperatura política, contudo, subiu muito com a abertura do segundo semestre dos STF e STJ. O presidente Luiz Fux insistiu no apoio à democracia em relação às instituições, e o ministro Barroso, do Superior Tribunal Eleitoral, fez votar, por unanimidade, a investigação de Bolsonaro contra a urna eletrônica. Por que tal insistência? Todos os juízes se perguntam e insistem também na análise das fake news. Ambos os ministros, com um tom acima do habitual, em cobrança ao presidente.
Voltando ao começo, a tragédia da Cinemateca aconteceu pelo abandono e desprezo por sua conservação. O incêndio, de fato, foi temido por todos nós desde que, ao defenestrar Regina Duarte da Cultura, o presidente lhe teria assegurado uma das joias culturais do País, a Cinemateca. Uma dupla perfídia, tanto que a atriz foi ludibriada pela segunda vez. Repito aqui que, quando soube que Regina não mais assumiria, pairou pesado silêncio sobre os cuidados devidos a toneladas de documentos e filmes.
O governo estava anunciando uma futura tragédia. Tanto temi pelo desastre, que telefonei a amigo paulistano museólogo, implorando para que fosse conferir como estavam as centenas de pastas dos documentos da Embrafilme e do INC — Instituto Nacional de Cinema. Já explico: dirigi, por quase dois anos, ambos os órgãos e arquivei no INC todos os preciosos relatórios feitos pessoalmente por um dos personagens mais importantes da cultura deste país, o cineasta Humberto Mauro. Também havia encomendado ao pioneiro do cinema educativo uma nova série de roteiros para diafilmes, destinados às escolas primárias e secundárias. Foi um trabalho de gênio que Mauro desempenhou com orgulho, assegurando-me ter sido a chave de ouro para encerrar sua carreira no audiovisual.
Além disso, também fiquei responsável por preservar, em arquivos importantíssimos na Embrafilme, a consolidação de uma indústria cinematográfica do País, desenhada por equipe escolhida por Luiz Carlos Barreto e por mim, com os economistas Jacques Deheinzelin e Noêmio Espíndola, além dos cineastas David Neves e Leon Hirszman. Isso gerou as portarias que abririam o mercado exibidor para os filmes brasileiros, passando de 56 dias obrigatórios para a exibição nos cinemas por 64 dias, logo depois 85, e finalmente 112 dias, com o intuito de estimular coproduções com outros países e cadeias de TV. Poucos sabem, mas registrei, em pastas da Embrafilme, toda a luta da Motion Pictures contra nossas sucessivas portarias, o que fez o presidente da indústria americana, um sujeito chamado Jack Valenti, ir a Brasília só para acusar o cinema brasileiro de inimigo dos Estados Unidos, comunistas em ânsias para prejudicar Hollywood. Veja só…
A resposta que recebi de meu enviado à Cinemateca foi desoladora: muitas das pastas já haviam sofrido danos por causa de telhados quebrados e enchentes, provocados por simples abandono.
Tentei intervir para denunciar, porém jamais recebi qualquer resposta. O silêncio certamente teria sido um réquiem perfeito para atiçar as labaredas que destruíram a memória do cinema brasileiro.
Mas, enquanto as chamas ateavam o fogo da indignação a todos os que amam o cinema do Brasil, sobe-me à cabeça um refrão de um velho divulgador de nossas coisas, as coisas nossas, o Adolfo Cruz, que exclamava em súplica de resistência ao preconceito contra o Brasil: “Falem mal, mas falem do Cinema Nacional.”
Mas, enquanto enxugávamos as lágrimas provocadas pela fumaça da tragédia de São Paulo, enxugamos lágrimas provocadas por sentimentos de orgulho de nossos atletas, que, esses sim, merecem solidariedade oposta à devotada pela destruição da memória.
Resumo nossos medalhistas em duas meninas, com toda a razão, os novos ídolos do Brasil, nossos quindins de graça, esforço e verdades, filhas de país sem mentiras. A fadinha Rayssa Leal, faiscante no skate street, até me parecia Aladin singrando o chão no tapete mágico de seu skate. Já Rebeca Andrade, nossa rainha de agora, juntou, em 90 segundos de seu solo, Bach com Baile de Favela de MC João e a batida do funk das periferias cariocas às Olimpíadas. Rebeca, ao se declarar fruto da perseverança, do sacrifício e da pobreza, decretou quase sussurrando recado supremo: que os jovens acordem. E não temam os esforços, os sacrifícios. O importante é lutar e ter fé. Muita fé!
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.