A coisa pegou fogo de novo no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que resolveu ressurgir das cinzas como um “espaço aberto à reflexão, inclusão e um chamamento para todas, todos e todes os falantes, ou não, do nosso idioma”.
Isso equivale, mais ou menos, ao IMPA — Instituto de Matemática Pura e Aplicada informar, orgulhosamente, que seu novo campus terá 8.762 m2, o que equivale a menos de 1% da área do terreno de 251.824 m2. Ou o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, divulgar que em breve colocará em exibição uma peça de grande valor histórico: a cama onde morreu Tiradentes.
Mas a língua é viva — como costumam dizer os que insistem em tentar esganá-la. Se você vir alguém que diga “se você vir”, em vez de “se você ver”, pode chamar o Ibama — e não duvide que a professora dos seus netos os corrijirá caso eles escrevam “os corrija”, e não “corrija eles”.
Por outro lado, há campanhas sérias no sentido de tornar o idioma menos carregado de preconceitos, intolerâncias, estereótipos e opressões.
A indústria de fios para equipamentos de áudio anunciou que vai substituir a antiga, obsoleta e reacionária nomenclatura “macho e fêmea” por “tomada e soquete”. Não se sabe ainda o impacto disso nas estatísticas de violência doméstica, mas espera-se que seja considerável.
A sociedade precisa estar atenta e forte ao sofrimento causado pela naturalização do vocabulário sexista, capacitista, modista (lembra da polêmica do “tomara que caia”?) e especista.
Já pensou no sofrimento de um casal homoafetivo vivendo num apartamento cujo piso é de tacos com encaixe macho e fêmea? O que custa a indústria de pisos criar o encaixe macho e macho (claro que é possível!) ou a fixação das peças por aderência, com junção fêmea e fêmea? E por que não haver também tacos não-binários ou encaixe-fluid — ora fixados, ora soltos. Esses são, inclusive, muito comuns em apartamentos mais antigos.
Reclama-se da militarização do governo, mas não da que ocorre há tempos no idioma. As conexões de quase todos os equipamentos são feitas por cabos. Componentes metálicos são soldados. Preços vêm sendo majorados. Times de futebol têm capitão. A corrupção é generalizada. E ninguém toma tenência! Temos que civilizar esse linguajar.
Para quem, como eu, se interessa pelos direitos dos animais, é angustiante ler denúncias contra gatos de luz e de água. Ouvir gente dizendo que algo mal feito é um serviço porco, que a vaca vai pro brejo sempre que algo dá errado, que andou engolindo sapos quando passou por uma humilhação. Se for para ser especista, que pelo menos seja valorizada a fauna nativa, e tenhamos jaguatirica de internet (não gato), que o mar não esteja para boto cor de rosa (não pra peixe), que se pague um mico-leão-dourado (não um mico preto comum). A natureza agradece.
No campo sexual, a coisa é infinitamente pior. Por isso, espero que, a exemplo do Museu da Língua Portuguesa e da Professional Audio Manufacturers Alliance (PAMA), nossos intelectuais progressistas se engajem na luta pela revisão do Kama Sutra, a fim de incluir ali as posições “papai e titia”, “mamãe e moço da Net” — e mesmo “papai, mamãe e personal”, “mamãe, o segurança, a vizinha barulhenta do 907 e a síndica”, ou “vovô, motoboy e amigo do Rotary”.
Se há enorme estresse emocional em quem não tem filhos e, ainda assim, se vê constrangido a praticar papai e mamãe, imagine o trauma dos veganos — impedidos, por questões éticas e morais, de usufruir, sem culpa, da cavalgada, do frango assado ou do canguru perneta.
Todes juntes vames criar um mundo novo, sem precisar de sangue, suor e lágrimas — só mexendo nas palavras. Já é uma baita evolução, não?
Ilustração: Sydney Michelette Jr.