Sim, já vivi experiências de quase morte.
Não, não tem retrospectiva de melhores momentos nem túnel de luz e almas do outro mundo com o nome da gente numa plaquinha, feito receptivo em aeroporto.
Sim, é uma sensação diferente.
Não, não recomendo.
A primeira vez foi quando eu tinha uns cinco anos. Voltei de uma festa carregado de doces, balões e língua de sogra. Suponho que hoje, para evitar acusações de sografobia, não se distribuam mais línguas de sogra nas festas infantis. Mas, naquela época, era mais fácil aniversário sem aniversariante que sem língua de sogra.
Soprei tanto a tal língua que ela desmantelou. Como eu já praticava a sustentabilidade, joguei fora os restos de papel colorido, e mantive o apito. E com encanto redobrado, porque meus pais não compravam brinquedo barulhento (quem dá brinquedo barulhento é tio), e eu nunca tivera um apito.
Comecei soprando-o de forma convencional. Não achei muita graça. Como também já era adepto de experimentações heterodoxas, resolvi aspirar o ar, em vez de expeli-lo dos pulmões.
O som foi lindo — e acompanhado de um apito de língua de sogra decolando boca adentro, dando uma rasante sobre a língua e indo fazer um pouso de emergência nas imediações das amídalas — onde entalou.
Os momentos seguintes são controversos. Alguns historiadores familiares relatam que fui levado no maior sufoco para o hospital (mas podem estar confundindo com a ocasião em que resolvi ingerir amendoim pelo nariz). Outros contam que, já ficando roxo e depois de ser virado de cabeça para baixo, um murro nas costas me fez ejetar o apito. Escapei da morte, mas não da surra. E garanto que surra dói mais.
Décadas depois, fui passar férias na Terra Nova, nordeste do Canadá. Um lugar gelado, vazio, ideal para quem quer observar baleias, comer figgy duff e ver um fiapo de aurora boreal.
Já sobrevoando Saint John’s, o piloto avisou que o trem de pouso não baixava, e que todos se preparassem para um pouso de barriga na pista. Não posso dizer que tenha havido pânico a bordo: houve um pandemônio. Gritos, choro e… gargalhadas. Sim, há quem gargalhe (de nervoso) num avião prestes a virar estatística e ajudar a indústria aeronáutica a remendar falhas de projeto.
Nunca tinha imaginado que morreria numa ilha semidesértica no Hemisfério Norte, em meio a gargalhadas histéricas – e clamores de “Oh God! Oh my God!”, que eu só conhecia de filmes pornô.
Abri a garrafinha de vinho (isso foi no tempo em que havia garrafinhas de vinho no serviço de bordo) e me propus a única grande questão que se colocava no momento: beber o vinho de olhos fechados ou manter os olhos bem abertos, para não perder nem um detalhe daquela experiência única? Optei por ver a bola de fogo tomando conta da cabine e calando igualmente choros e gargalhadas.
O trem de pouso funcionou (suas engrenagens devem ter se sensibilizado com as gargalhadas) e foi ali que me dei conta de que sim, há ateus em avião caindo.
No dia seguinte, fui almoçar com um casal de amigos. Enquanto a mulher preparava a comida, o marido me convidou para conhecer a cidade. Eu tinha acabado de contar o susto da aterrisagem e ele teve uma ideia. Embicou o carro para o aeroporto e me convidou a embarcar num aviãozinho daqueles bem teco-teco.
Eu já sobrevivera a uma língua de sogra, duzentas crises de asma e uma overdose de amendoins enfiados nas narinas. Sobreviveria a um quase naufrágio na costa da África, à explosão da minha cabeça por falta de aclimatação à altitude de La Paz, a uma intoxicação alimentar na Índia e a seis anos morando em Curitiba. Podia aguentar mais uma aventura aérea.
Entrei no avião (daqueles para dois passageiros, praticamente um jipe com asas), afivelei o cinto, ajustei a cam no automático. Meu amigo então tirou do bolso um papelzinho, desdobrou-o em cima da coxa e começou, lendo as anotações, a ligar a geringonça.
— Meu primeiro voo solo — disse, orgulhoso.
Foi a última coisa de que me lembro. Soube depois que sobrevoamos falésias, contornamos Cape Spear (o ponto mais oriental das Américas) e voltamos sãos e salvos, a tempo do almoço.
Não tenho uma única foto para comprovar a aventura. Pensando bem, acho que rolou um trailer da minha vida, pouco antes de avistar algo parecido com um túnel e vislumbrar meu avô, de branco, com aquele sorriso de “Eu não falei que Allan Kardec estava certo? ”. Talvez tenha sido só um piripaque. Um treco, um troço, um trem. Porque meu avô segurava uma plaquinha onde se lia “Ainda não é desta vez”.
Ilustração: Sydney Michelette Júnior