Vulnerabilidade. Empatia. Resiliência.
Além do medo, a primeira onda da pandemia veio embalada num conteúdo #goodvibes. “Vamos sair dessa melhores.” “Estamos todos no mesmo barco.” “Em momentos de crise, precisamos nos reinventar”. Os italianos cantavam nas sacadas, os profissionais de saúde eram aplaudidos.
Tudo muito lindo e fugaz.
Vulnerabilidade e empatia não são meras hashtags para ganhar seguidores no Instagram. E para sermos resilientes, precisamos primeiro estar vivos.
O Brasil vulnerável se mostrou logo, com a primeira morte registrada. Chamava-se Rosana. Mulher, diarista, morava num conjunto habitacional numa das regiões mais pobres de São Paulo. Tomava conta do filho, com necessidades especiais, e da mãe, a quem era muito ligada. A mãe também viria a falecer quatro dias depois, ambas de covid.
Quando eu a atendi, ela estava com o uniforme. Poderia ser Rosana, mas chamava-se Maria de Lurdes. Febril, oxigenação baixa, perguntei se ela não havia sido liberada do trabalho. “Doutora, não me julgue: se eu não trabalhar, não tenho direito a cesta básica. É para o meu filho — ele está desempregado.”
Ela morreu cinco dias depois. Sem auxílio, sem proteção social, ela não teve a oportunidade de reinventar-se. Foi enterrada sem velório.
Vulnerabilidade é ser obrigado a sair de casa para trabalhar.
Empatia é dividir o pouco que tem.
Resiliência é continuar vivo.
Nós, médicos, não aprendemos a ser vulneráveis nem empáticos; ninguém nos ensina isso na faculdade. Perdemos um tempo enorme decorando reações químicas, doenças genéticas raras, mas ninguém nos ensina a responder ao básico.
“Doutora, eu vou ficar bom?”
“Ele vai melhorar? Vai ficar com sequelas?”
“Ela sente dor? Ela pode me ouvir?”
A resposta é quase sempre a mesma “Eu não sei. Eu não sei, mas eu vou estar ao seu lado. Eu não sei, mas vamos tentar descobrir. Eu não sei, mas você pode conversar com ela. Alguma parte dela está ouvindo o que você diz. Ao invés disso, cobrimos os pacientes e familiares de termos médicos e estatísticas que disfarçam nossa ignorância e desconforto.
A pandemia tem sido um grande experimento de vulnerabilidade coletiva. Não estamos no mesmo barco, mas enfrentamos a mesma tempestade. A qualidade do barco tem muita influência — é mais fácil afundar quando se está numa canoa, mas não quer dizer que o iate não possa naufragar.
Tentamos fugir da nossa própria vulnerabilidade, dizendo que o vírus só pegava os mais idosos, ou só os que tinham comorbidades, ou os que eram do grupo de risco, ou os que não tinham acesso à saúde. Mas, quando jovens e saudáveis ficam doentes e faltam leitos nos melhores hospitais da rede privada do País, percebemos que não sairemos dessa enquanto todos não saírem. E isso não é só uma frase empática e bonitinha: é a realidade.
Vulnerabilidade é dizer “eu não sei”.
Empatia é permanecer ao lado, mesmo não sabendo.
Resiliência é continuar indo trabalhar, sem perder a vulnerabilidade e a empatia.
Cassia Righy é intensivista, médica do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer e pesquisadora do Laboratório de Medicina Intensiva da Fundação Oswaldo Cruz. Fez doutorado em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas na Fiocruz e pós-doutorado no Instituto Pasteur.