“Só encontraremos o fio de Ariadne para sair do caos atual se refletirmos em conjunto.”
De fato, a situação do Brasil, nestes dias tenebrosos do crescimento da peste, pode escorregar para três soluções.
A primeira, como diria o cronista Antônio Maria (100 anos, neste 15 de março), é chorar, simplesmente chorar até lágrimas de crocodilo, quando o amor não couber mais no peito. Aqui, o amor alegórico se refere ao País insultado pelo desgoverno, não um coração masculino traído pelo amor desfeito. Essa, uma ‘maladie d’amour’ bem mais amável.
A segunda, ainda agrupada à sabedoria poética do cronista agora centenário, é correr ao jardim mais próximo e colher flores silvestres, que as rosas andam ao preço da morte. Aliás, forçado ao sentido figurado, logo advirto que não serão flores, mesmo de segunda categoria, para alegrar eventuais namoradas, e sim para enfeitar os mortos pela covid, homenageando-lhes os corpos degredados ao vazio dos velórios.
De mais a mais, ao batermos a cifra absurda dos mais de 300 mil mortes, asseguro que as flores se tornarão os produtos mais especulativos e caros em meio a esse morticínio jamais visto, que lota todos os hospitais do País, tanto quanto os cemitérios. E é claro que abarrota tragicamente os necrotérios. Daqui a pouco, chegaremos às covas coletivas, Auschwitz sem tirar nem pôr.
Esse cenário macabro ainda causa uma terceira, mas primicial indignação.
Afinal, pergunta todo um país de 220 milhões de almas: como chegamos a esse ponto? Quem se responsabiliza por essa tragédia?
São as tramas da sorte, são as provocações do destino astral? Até poderia ser se o País estivesse acéfalo, sem um comando central. Mas a resposta se impõe em gravíssima interrogações: temos mesmo governo? E até que ponto responsável?
Vamos por etapas, e não serei apenas eu a bramir indignação como cidadão. É o que ouço dia sim, dia também, nas ruas, nas rádios, nas TVs.
Cadê as vacinas para imunizar um país-continente? E quem foi o ‘distraído’ que, ao não confiar nelas, nem sequer reservou, com prioridade no mercado (então aberto), milhões de imunizantes? Cadê o estímulo e o exemplo à população para uso obrigatório de máscara e distanciamento social?
Quem foi o ‘distraído’ que fez exatamente o oposto? Que ‘distraído’ nunca se apercebeu de uma população tão despreparada culturalmente, para recomendar não tomar vacina pelo risco de virar jacaré? Quem, a tal ponto ‘distraído’ que, quando teria contraído o vírus, se disse com uma gripezinha, logo curado por remédio desacreditado pela ciência, a cloroquina.
E finalmente quem é o ‘superdistraído’, ou, antes, o supercientista e economista mundial a negar os lockdowns, a ponto de chegar agora ao limite alucinatório de bater às portas do STF para impedir estados e prefeituras postos em desespero a ponto de decretar o extremo, o fechamento de suas cidades para tentar o fim da expansão do vírus letal?
O vulgo, ou seja, todos nós, queremos saber quem é o ‘distraído’ que, ao trocar o plácido general que se dizia ministro da Saúde (o terceiro em um ano), esqueceu-se, por dias, de empossar seu substituto?
Com a gravidade da situação sanitária, a expectativa geral era que o novo ministro fosse assentado no cargo no exato minuto da confirmação de seu nome. Qual o quê! Nosso ‘distraído’ parece ter se habituado à lerdeza do general anterior e espera, entre um bocejo e outro, duas coisas: que o general se insubordine e queira voltar ao ministério, ou que a noiva escolhida como novo ministro termine de bordar o caprichoso vestido de Ariadne para uma entronização de arromba, com os deuses do Olimpo que baixarão à Terra, para lhe apor bênçãos especiais, sorte esquizofrênica e ramos de louro à cabeça, impondo-lhe admissão como mais um de seus pares.
Quanto à questão central desses aflitos comentários, os lockdowns, reconheço que a controvérsia sobre eles é grande. Contudo, há que observar a realidade do Brasil sem patriotada alguma. De fato, este país tem uma população tão disciplinada quanto um exército alemão.
Em verdade, digo-vos e asseguro: sem rigor militar, sem fiscalização paralisante, sem multas pesadas, nossas doces e ‘distraídas’ autoridades podem pedir de joelhos o distanciamento social e que todos fiquem bem guardadinhos em casa. Será o caminho perfeito para a população desaparecer desta para outra – onde, de imediato, praias, bares, baladas e, sobretudo, conduções públicas estarão repletas de milhões de seres desencarnados dançando, batucando, e aos gritos de ‘evoé’, festejando tudo e beijando todos, grudadinhos uns aos outros.
Ainda bem que o Valor Econômico acaba de publicar em manchete que estrelas da economia exigem, para arrefecer a contaminação, um lockdown nacional. Eu disse nacional, tal como muitos países sensatos procederam para tentar cortar o mal pela raiz. Uma vida sequer vale mais que um boteco entupido a celebrar com cervejadas e petiscos.
O ‘fio de Ariadne’ — o conhecimento do caminho de volta da obscuridade à luz – é acessível a toda alma humana capaz de despojar-se de velhas ideias e preconceitos seculares, para se iniciar nos caminhos da evolução e do aperfeiçoamento individual.”
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.