Com a pandemia da Covid-19, temos tempo novamente para escrever cartas! Tecendo e bordando o pensamento sobre o tempo, história e memória, associei a ideia de tempo a algo que havia sido inscrito como conceito no ato da criação da CPLP (Comunidade dos Países da Língua Portuguesa), que teve, entre seus fundadores, José Aparecido de Oliveira (1929-2007), ex-ministro da Cultura e embaixador do Brasil em Portugal.
Ele e o ex-presidente de Portugal Mário Soares, o ex-presidente de Angola Agostinho Neto e representantes da Guiné Bisau, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste criaram a CPLP, sob os fundamentos da cooperação e da fraternidade. Passei também a analisar o que ocorreu quando substituímos todas as nossas trocas de correspondências por e-mail. Foi essa a reflexão inspiradora para a idealização do livro “Cartas de Lá e Cá”, elaborado a partir da troca de correspondências entre 450 crianças portuguesas e brasileiras, de 7 a 14 anos e editado para ser distribuído, gratuitamente, nas escolas.
As centenas de cartas e os cartões-postais, individuais e coletivos, revelando pensamentos criativos, começaram a ser escritos como atividade de sala de aula, em fevereiro de 2019. Durante seis meses, foram trocadas correspondências entre 200 estudantes da Escola Básica de Óbidos, em Portugal – uma vila medieval que foi tomada pelos Mouros em 1148, e era dote das rainhas —, e 250 estudantes de seis escolas da área rural do município de Conceição do Mato Dentro, fundado em 1842, em MG. A cidade histórica foi escolhida para o projeto por ser a terra natal do embaixador José Aparecido, meu tio e inspirador do livro e a quem homenageei em 2019, por ocasião dos seus 90 anos, na sede da ABL (Academia Brasileira de Letras), junto com o poeta e imortal Geraldo Carneiro.
A revolução tecnológica nos impôs uma nova realidade, desafiando, mais uma vez, a história humana para refletir sobre os conceitos de tempo e espaço. Passamos a nos perguntar: como conciliar uma comunicação muito ágil mas “atropelada”, na qual se perde o conteúdo em razão dessa imposição de velocidade exigida no “espaço tempo”? O tempo do “Snapchat”, no qual crianças enviam a informação e esta é recebida no minuto seguinte desaparece! Tempo é ficção, portanto, construção no existir, e, se não compreendido como processo, é uma ameaça de esvaziamento de sentido a alimentar desesperança. Cartas exigem tempo, reflexão para escrever, tempo para postagem, tempo para esperar a resposta.
“Cartas de Lá e Cá” é uma construção coletiva luso-brasileira, pois, além dos estudantes, as professoras, os escritores e as diretoras das escolas — que utilizaram as cartas como matéria-prima — conversaram sobre o acordo ortográfico, que regula 98% das palavras da língua portuguesa; através das cartas, puderam encontrar muitas delas, inclusive as que fazem parte do grupo dos 2%. Foi desafiador respeitar a escrita antiga (e a nova) de ambos os países.
O livro foi editado para possibilitar seu uso nas disciplinas de Português, Geografia e História. Nessa troca — começada há mais de 500 anos —, e para organizar tantas conversas, foram selecionadas fotos e publicado um glossário. Esse projeto contou com o apoio do Instituto Camões e da Embaixada do Brasil em Portugal.
Estive em Portugal, em novembro de 2019, embarcando do Rio com imensas malas, cheias de livros para o lançamento. Em Óbidos, participei de uma mesa composta pelos professores Ana Raquel Henriques, Alexandre de Souza e Dina Carvalho. À ocasião, ressaltou-se a importância do livro para aquelas crianças que passaram a se reconectar de forma diferenciada, com o Outro. Emocionou-me encontrar os alunos no auditório da escola. Ali, senti o contraste das realidades vivenciadas e completamente diferentes dos estudantes participantes: as crianças portuguesas são preservadas das questões sociais mais graves, as quais atingem os colegas, que vivem no Brasil. Os portuguesinhos me pediram para conhecer os novos amigos através de uma videoconferência.
Assim, desenhou-se a segunda etapa do projeto, que seria efetivada através do meu compromisso assumido diante deles: uma live no dia 5 de maio de 2020, data que marcou a primeira edição do Dia Mundial da Língua Portuguesa, instituída pela UNESCO. A data, simbolicamente escolhida para uma videoconferência entre os estudantes, permitiria às crianças conhecerem-se virtualmente e, assim, ampliar os seus conhecimentos sobre as relações históricas que nos entrelaçam a Portugal e à CPLP. Infelizmente, o mundo foi surpreendido pelo avanço da pandemia da Covid-19, e, em março, foi decretada a quarentena no Brasil. O mundo se fechou, e fomos obrigados a cancelar o evento. Contudo, apenas adiamos os nossos sonhos para depois que vencermos o vírus.
Rosara de Oliveira Maneira, é advogada, mestre em Direito Constitucional e professora de Teoria Geral do Estado.