Voltaire, o iluminista francês morto no século XVIII, ficou famoso com a frase “não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o último instante o teu direito de dizê-la”. Para ele, defensor intransigente das liberdades civis, a frase é considerada uma máxima da liberdade de expressão. Na verdade, o filósofo nunca a pronunciou; ela surgiu dois séculos depois, em 1906, em um livro da escritora britânica Evelyn Hall, “Os amigos de Voltaire”, onde ela a publicou entre aspas.
Em 1943, o americano Burdette Kinne escreveu um artigo para uma publicação na The Johns Hopkins University Press, intitulado “Voltaire nunca disse isso!”, e usa uma carta da própria Evelyn Hall, de 1939, onde ela confessa ser a autora da frase, erroneamente atribuída ao filósofo, “chegando a apresentar desculpas por seu texto”.
Enganos como esses existem às centenas e, para ficarmos no nosso quintal, tem a famosa “esqueçam o que escrevi”, pronunciada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele sempre negou sua existência; na verdade, não existe nenhuma gravação que prove o contrário. O que existe é apenas a declaração, em “off”, de um empresário, que disse tê-la ouvido em um almoço.
Mas retornando a Voltaire: mesmo que ele concordasse com essa frase que lhe atribuíram, se vivo fosse, será que continuaria defendendo-a nos dias de hoje?
Duvido.
Com a implantação da Internet e a consequente criação das redes sociais, como o Facebook, o Instagram, o Twitter e outras, a liberdade de expressão tornou-se um corredor amplo e infinito para que milhões de usuários digam o que bem entendam, o que seria normal caso não extrapolassem para a propagação da mentira e do ódio. Às vezes, através de robôs, outras usando o seu próprio nome, como foi o caso recente do quase ex-presidente Donald Trump.
“Não concordo com uma uma palavra do que dizes, mas defenderei até o último momento o direito de dizê-la” — seria perfeita em um debate democrático, quando são discutidas ideias, doutrinas, políticas públicas, ou seja lá o que for, em ambiente onde possa haver um embate respeitoso.
Nos Estados Unidos, em levantamento feito pelo The Fat Checker para o jornal The Washington Post, constatou-se que Trump mentiu, nesses quatro anos, em discursos ou pelo Twitter, uma média de 23 vezes por dia. Bani-lo da rede social foi medida drástica tomada com enorme atraso.
No Brasil, é urgente que a agência local do Twitter não espere até o último mês de 2022, para que tenha a mesma atitude em relação ao Presidente Bolsonaro e seus filhos.
As mentiras do capitão, que não ficam tão distantes das do ídolo Trump, não são novidades. Elas vêm desde a época da campanha, não pelas promessas não cumpridas, mas pelos ataques que faziam à oposição, como, por exemplo, a “mamadeira de piroca” — e que, na campanha eleitoral recente para prefeito do Rio, foi adaptada por Crivella ao dizer que Eduardo Paes entregaria a secretaria de Educação ao PSOL, para que fosse liberada a pedofilia nas escolas.
É certo que muitos posts são apagados quando a vítima entra na Justiça, mas sempre depois que o estrago já foi feito.
As redes sociais conhecem muito bem os nomes dos propagadores do ódio e das mentiras aqui e no exterior – e não é mais admissível que eles fechem os olhos para esses usuários.
Mais cedo ou mais tarde, uma guerra civil irá eclodir em alguma parte do Planeta. Ela será organizada e convocada pelo Facebook, pelo Twitter, pelo Instagram, pelo WhatsApp ou por outras tão ou mais perigosas embora menos populares.
Ou as redes dão um “basta já” a esses bandidos, ou serão responsabilizadas pela ação dos marginais que continuam usando suas redes para organizarem o caos, a baderna e as tentativas de golpe às instituições.
Dacio Malta é jornalista e diretor de cinema. Dirigiu “O Dia”, o “Jornal do Brasil” e “O Globo”; e realizou dois documentários: “Noel Rosa — O Poeta da Vila e do Povo” e “O Gato de Havana”, que conta a história do “Gato Tuerto”, o mais emblemático cabaré cubano.