“Chega de velhas desculpas e velhas atitudes. Que o ano novo traga vida nova, como o rio que sai lavando e levando tudo por onde passa.” (Clarice Lispector — 100 anos).
Todos estamos a ouvir insistentemente que os riscos de aglomerações pelas festas do Natal e réveillon provocarão a potencialização da tragédia 15 dias depois.
Prova disso — asseveram os infectologistas — foram os feriados alongados de novembro, a determinar uma aterrorizante segunda onda nesses 20 dias de dezembro. Aos negacionistas, a ciência saca do colete outra prova trágica: o feriado do Dia de Ação de Graças nos EUA, praticamente, dobrou o número de vítimas. Uma opinião pública vigorosa intimou Trump a precipitar o início da vacinação da Pfizer, quase com a mesma pressa do governo inglês.
Só que — agora se sabe — o governo americano saiu à frente e fez as gestões que todos já estavam fazendo. O que, cara pálida, reservando tantos milhões de doses e seringas quantos seus habitantes? Ou seja, o óbvio para qualquer cabeça pensante. E o Brasil? Responda você, que me falta ânimo. O fato é que, segundo os especialistas, a situação aqui pode ficar — se já não está — muitíssimo pior por conta de uma população descuidada e rebelde, talvez sensível ao negacionismo do presidente
E a vacina, que todos estão a pensar que uma simples picadinha faz a imunidade horas depois?
Infectologistas amigos meus têm preocupação mais grave: o dia seguinte da vacinação, se e quando finalmente chegar, com todos tirando as máscaras, amontoando-se em distanciamento zero, como a recuperar o tempo perdido.
Fiquemos à espreita em relação à vacinação quanto às promessas (existem mesmo?) do governo, embora pareça que São Paulo não esteja disposto a uma desmoralização pública, depois de saltar à frente no País. E correr o risco de determinar datas – elemento de consolo para a população postas de mãos aos céus pela imunização imediata. O que quero declarar é que ninguém pode arguir o direito de se iludir. Os tempos mudaram radicalmente, e tradições seculares de Natal e Ano Novo, pequenas ou grandes, simplesmente devem ser canceladas.
Finalmente eu, que venho insistindo na mesma tecla pelos últimos nove meses, prefiro prejuízos na economia que óbitos e sofrimentos de milhares de seres humanos. Vale realçar que 90% dos festejos públicos programados por todos os estados e por mais de mil cidades foram cancelados. Umas com mais antecedência, outras com menos (e mais desdém para com a vida dos cidadãos), como o Rio do agora preso Marcelo Crivella, cujos quiosques na orla de Copacabana e Ipanema ainda continuavam, até ontem, a vender aglomerações na areia.
Isso até para ceias de Natal e, sobretudo, réveillon. Só acreditei porque indaguei pessoalmente e pude comprovar. Ainda assim, algumas famílias, por pura pieguice irresponsável, estão programando festas de até 20 ou mais pessoas, sem acreditar nos riscos fatais que advirão. Uma outra amiga, ao ver recusado por mim convite para jantar opíparo na Avenida Atlântica, ainda me disse ingenuamente: “Você acha que eu teria coragem de separar meus filhos e netinhos de seus avós com quase 90 anos? E se for este o último?” Não me contive e lhe respondi: “Pois você, minha cara, está abrindo porta para que isso possa acontecer. O que pode ocorrer em menos de um mês… Desculpe, digo-lhe tal coisa pela estima que lhe tenho.”
Portanto, tudo indica que teremos o janeiro mais triste da nossa história, como asseverou ao Globo (quero crer a Merval Pereira) a cientista (além de escritora de méritos) Margareth Dalcomo. Ela agregou ainda a seus alertas a verdade ao dizer que “falhamos em trazer uma consciência cívica da gravidade do que estamos sofrendo”. De fato, outro dia, cumpri uma data redonda de aniversário. Chegaram até a programar almoço para cem pessoas, ao que retruquei com um muxoxo: “Nem pensar. Vou celebrar meu aniversário com apenas oito parentes muito chegados.” Seriam 12, uma já perigosa quase multidão. Limitei a oito, mas com dois a cada mesa das quatro postas na varanda externa, com distância de 2 metros entre cada convidado, todos de máscara obrigatória e álcool em gel à mesa. Sábia Margareth Dalcomo!…
Para encerrar, evoco, nestes tristes tempos, uma cantiga de Natal do baiano Assis Valente, a única que, em meio a hinos de euforia, e bobagens, como Jingle Bels, celebra a reflexão, a gravidade da tristeza. Tal como nos sentimos neste Natal, com hospitais inflados de sofrimentos, de mortes, e sem festas.
Assis intitulou-a, ironicamente, “Boas Festas”. Era uma canção preferida pelo poeta Drummond: “Eu pensei que todo mundo / Fosse filho de Papai Noel / Bem assim felicidade / Eu pensei que fosse / Uma brincadeira de papel.”
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.