O aborto constitui um tema de difícil entendimento quanto a uma adequada resolução político-jurídica em várias sociedades, perpetuando-se as infindáveis discussões. Envolvendo aspectos médicos, jurídicos, religiosos e morais, é uma prática antiga, tratada de maneira distinta, em cada momento histórico, por diversas culturas. Na Antiguidade, era uma questão das mulheres, tal como o eram a gravidez e o parto. Devido aos escassos conhecimentos médicos, o feto era considerado um apêndice da mãe. No mundo greco-romano, o aborto era punível apenas nos casos em que lesasse um interesse masculino. No entanto, serão necessários séculos para identificar o momento em que ocorre a animação do feto.
No Brasil, essa prática só passou a ser criminalizada a partir do Código Criminal de 1830. Neste, só se punia a conduta de terceiro que realizava o aborto, e o autoaborto não era crime. Com o Código Criminal da República (1890), passou a ser criminalizado. O atual Código Penal, desde 1940, manteve as disposições sobre o aborto presentes no Código Criminal, com exceções para a gravidez resultado de estupro ou que represente risco de vida à mulher.
A incoerência da legislação penal brasileira parte da premissa de que a vida inicia-se na concepção. O aborto, portanto, em qualquer fase da gravidez, seria um homicídio. Esse mesmo Código Penal só admite como não sendo crime uma única hipótese de homicídio: aquele cometido em legítima defesa. Por outro lado, e incoerentemente, permite o homicídio do feto em casos de estupro, como o caso da menina de 10 anos, no Espírito Santo, violentada pelo tio. A contradição é o fato de ceifar-se uma vida – concebida de um fato terrível e doloroso — que não tem a ver com a preservação de outra vida.
Após lutas das feministas pela despenalização, a maioria dos países democráticos do Ocidente aboliram a prática criminalizadora, mas, no Brasil, centenas de mulheres, principalmente de baixa renda e baixa escolaridade, morrem por interromper a gravidez em condições clandestinas. A investigação das mortes decorrentes do aborto no nosso País permite perceber o elevado número de mulheres que abortam. Tão alto índice demonstra o efeito perverso da legislação, levando em consideração a subnotificação da mortalidade.
Dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) indicam que, no Brasil, uma em cada cinco mulheres com até 40 anos já fez aborto, comumente realizado nas idades entre 18 e 29 anos. A pesquisa aponta que a religião não é um fator para a diferenciação das mulheres no que diz respeito à realização de tal prática, já que reflete a composição religiosa do País: a maioria dos abortos foi feita por católicas, protestantes, evangélicas e de outras religiões, ou sem religião.
Hoje, na maior parte da América Latina, o aborto clandestino é um grave problema de saúde pública, e sua solução é um desafio que perpassa a exigência de medidas no processo de descriminalização. Em pleno século XXI, observamos os avanços nas legislações estrangeiras sobre descriminalização do aborto, mas prevalece certa inércia e uma hipocrisia sobre isso em nosso país.
É preciso estabelecer a conciliação do direito da mulher em não ter filhos, com o imperioso direito à preservação da vida do nascituro, o que jamais será alcançado com a criminalização. Esta tem conduzido milhares de mulheres ao recurso do abortamento inseguro e com risco de morte, devido ao problema que significa uma gravidez indesejada.
A educação na área da sexualidade é a única política pública que apresenta resultados na redução da incidência do aborto.
Reis Friede é desembargador federal, presidente do Tribunal Regional Federal (TRF2). Há mais de 40 anos, dedica-se ao estudo do Direito. É, ainda, autor do livro “Reflexões sobre segurança pública e corrupção” (Globo Livros) e professor em algumas instituições, como Unirio, Eceme, Ecemar e Emerj.