O preconceito racial, os embates do feminismo, a obsessão pelas aparências, a superficialidade das relações e a desigualdade social caracterizam a contemporaneidade, para além da pandemia. Essas questões, contudo, já eram assuntos palpitantes há um século e foram representadas pelo intelectual-artista paulistano Belmonte em suas caricaturas publicadas em revistas cariocas, como “Careta” e “Frou-Frou”.
Nas imagens art-déco embaladas por um fino senso de humor, mulheres desafiavam maridos, empregadas domésticas enfrentavam patroas, artistas afrodescendentes buscavam reconhecimento e mendigos nas ruas interpelavam famílias a caminho do desfile social. Finda a Primeira Guerra e a primeira onda de gripe espanhola, o período convencionado como os “anos loucos” foi caracterizado por uma certa euforia e ânsia por liberdade embalada pelo cinema, o som das jazz bands e a cultura jovem americana, estimulando novos arranjos nas relações raciais e de gênero.
Figuras arquetípicas associadas à época, como a “melindrosa” e o “almofadinha”, que poderiam corresponder a uma mulher em busca de novas experimentações e um homem mais permeável ao feminino, usavam a moda para materializar posturas inéditas, não sem enfrentar a ira dos que condenavam a exibição do corpo, a androginia, a ousadia de comportamento e visualidade.
Em uma das caricaturas, uma mulher é ofendida por homens que justificam sua atitude em função das roupas que ela usava. Se isso era uma situação plausível há cem anos, impossível não pensar na “cultura do estupro” e no posicionamento masculino que procura legitimar o desrespeito em função da indumentária usada pela mulher.
Hoje, a cultura visual é predominante, catapultada pelas tecnologias e redes sociais, onde predomina a vaidade narcísica; mas, naquele momento, casais de classe média-alta já estavam muito preocupados em ser flagrados por fotógrafos, para quem fariam “pose de instantâneo”, fingindo naturalidade. A luta pelo respeito à diversidade de gênero se intensificou nas últimas décadas, mas faz parte de um processo mais amplo, no qual indivíduos do século passado tiveram importante participação ao romper o binarismo sexual vigente.
São muitas as conexões que se vislumbram no arco do tempo. Não se pode desconsiderar que, de 1920 para 2020, houve avanços; na esfera legal, foram tipificados os crimes de feminicídio, homofobia e racismo. Mas impressiona a atualidade de temas e dogmas que permeavam a sociedade naquele momento, decalcados em cores por Belmonte, e que ainda permanecem entre nós.
Marissa Gorberg é Doutora em História, Política e Bens Culturais pela FGV. Participou, como bolsista Capes, na universidade King’s College London. É autora dos livros “Belmonte: caricatura dos anos 1920” (Editora Fundação Getúlio Vargas), finalista do Prêmio Jabuti 2020, na categoria de Ciências Humanas; e “Parc Royal: um magazine na belle époque carioca” (G. Ermakoff Casa Editorial).