Eu queria estudar a arte popular do carnaval e cheguei ao conceito de carnavalização do mundo segundo Mikhail Bakhtin (filósofo russo), uma voz da praça pública não oficial. Sufocado pela voz oficial, a voz hegemônica, fui estudá-la. Cheguei aos conceitos de vozes da “Modernidade Sólida X Modernidade Líquida”, que me levaram ao estudo da “Hipermodernidade e da Sociedade do Espetáculo”, que me trouxe a “Revolução Microeletrônica”, uma voz internética, uma praça pública, com vozes outras, aquilombadas.
Isso me trouxe o estudo do imaginário dessas vozes e da arte fantástica, que quebra o paradigma das vozes autoritárias.
Agora, estudo o tempo alegre, a voz da festa. Na teoria da carnavalização, Bakhtin discorre sobre a existência de uma voz da praça pública, crítica, rebelde, indomável, cômica, debochada, grotesca, portanto, claro, nada admirada e em constante tensão e negociação com a voz oficial, representada pela voz do Estado e da Igreja.
Vou ligar para o além e contar pro meu amado linguista, que teorizou a importância da voz do povo, que ele precisa acrescentar à teoria que as doenças iriam começar a interferir, de forma mais frequente, na liberdade do tempo alegre, daquela gente sem dinheiro, mas cheia de outras coisas que o dinheiro não compra, fazendo com que a voz não falasse — não da forma uníssona, como ele conheceu, durante todo um ano. Já éramos apertados na prisão de cinco dias que a igreja nos dava; agora, vem o vírus e nos tira todo o alto verão e seus saracoteios.
Não teve o tempo da inversão e da ambiguidade na Grande Peste, nem na Gripe Espanhola, nem na Covid-19. Que essa moda não pegue e não vire uma companhia sempre presente! Como viver sem o respiro do tempo de liberdade? Como recarregar as baterias sem a identidade cultural da cidade? Porque moramos na capital mundial da escola de samba, somos motivos de inspiração para que, em Londres, elas cantem enredo em inglês, e, em Tokio, a vida de Hiroito seja samba em japonês, com inacreditáveis cobrinhas moças nipônicas dançando desengonçadas em biquínis e tamancões que compram das passistas brasileiras.
Vendemos nossa simpatia, capitalizamos nosso chica-chica-bum depois de quatro anos, na Idade das Trevas, quando a nuvem neopentecostal trouxe a antítese de nossa utopia tropicalista. Onde que a cidade de Leila Diniz, barriguda de biquíni na praia, combina com e pode ser liderada por alguém que não ri? Nosso destino é mostrar os dentes; o carioca não nasce, sorri! Todo o projeto que tirou a verba das escolas acabou com os ensaios técnicos, e que iria salvar o Rio. Não salvou e o condenou a nossos piores pesadelos: tristeza, solidão e desesperança.
Enquanto isso, eles lá, exorcizando, gritando, apresentando o trágico espetáculo de ensinamentos contra a fraternidade: mulher não estuda, bicha não tem família estruturada, homem veste azul e mulher veste rosa. Quando achávamos que o fundo do poço era terrível, vem a pandemia para coroar o ocaso destes tristes tempos.
Tempos em que a mulher casada, protegendo a visão de seu marido e filhos, joga uma garrafa na bonitona que ela acusa de ser puta. Mas o que vocês têm contra nós, as putas? Nos deixem, relaxem, vossos maridos vão segurar o rojão.
Voltando à vaca fria, ou melhor, ao veado quente, o produto que define culturalmente a vida do deslumbrante Rio não dará o ar de sua graça. Mas não dava para os organizadores desse carnaval oficial, que vende ingressos e precisa de banheiros; não dava pra puxar essa responsabilidade de aglomeração pra eles.
Agora, cada um decide se irá ao bloco de sujo, ou não – decisão de foro íntimo, responsabilidade individual. Os organizadores passaram a correta mensagem de respeito à ciência, consciência social, solidariedade aos 150 mil mortos e esperança de que agoniza, mas não morre. Nosso dilema agora é ajudar os trabalhadores da folia, que estão à míngua.
Mas sambar é o nosso ofício, nossa vocação para a vida agora, e para honrar a sabedoria da nossa ancestralidade carioca galhofeira. Corporificar, em passos de beleza rítmica, o que o batuque nos diz: é o tambor do samba que provoca nossos músculos e nos move para entregar suor de resistência cultural. Somos a população da Cidade Maravilhosa, comprometidos em fazer visibilizar nossa importância, bagagem e sobrevivência.
Que todos nos valorizem e reconheçam que “Sou, Porque Somos!” Nós e vocês que nos ouvem — juntos, entendendo que aplaudir e preservar esse esforço do samba no pé os fazem melhor e nos conectam com um mundo mais bonito, de diversidades de vozes e expressões, que fundaram a grande “terra brasilis”.
Ciata, Donga, Pixinguinha, Cartola, Ciro do Agogô, Gargalhada, Paula do Salgueiro, Vitamina, Sinhô, Gigi, Albino, Pamplona, Adele, Sargentelli, Pinah, Chacrinha.
Nos requebros e gingados, a mais perfeita tradução da alma verde-amarela.
Somos o jogo de cintura, somos os “se vira nos 30”. E precisamos de vossos aplausos, que nos tornam mais gingados, pois, exibidos, nascemos para ser. Rufem tambores, sandália-plataforma, sapato bicolor, miudinho, tufão nos quadris. Breque!
Passos que passeiam pela passarela. Roda pandeiro, lata d’água na cabeça, cabrocha malandro histórico e moderno. Toquem a sirene, abram os portões, com ou sem escola, de todas as cores, gêneros e trajetórias. Somos o samba brasileiro, que aqui se apresenta. Abre alas e pede passagem, porque sambar é existir sambando: é o dom que Olorum nos deu!
Milton Cunha é psicólogo, professor universitário (sobre Produção de Carnaval) e, talvez, o que ele mais goste de ser na vida: carnavalesco. Quem não espera loucamente pelos seus comentários durante os desfiles das escolas de samba? Conhece tanto do assunto, que pode responder se uma passista está de TPM ou qual o ascendente de um sambista. Como já falamos aqui, Milton Cunha é a própria apoteose, da sinceridade, da lealdade, da criatividade. Ele nasceu na Ilha de Marajó, mas é carioca de fora a fora.