Eu poderia citar Antonin Artaud, o teatrólogo francês que escreveu sobre o ‘teatro e a peste’; poderia falar sobre o teatro pós-gripe espanhola e de como o teatro do absurdo nasceu, ou ainda das cias. de teatro do Brasil que o grande público desconhece devido a escolhas televisivas que o próprio grande público insiste em assistir, mas, hoje, dentro do ciclone viral da pandemia, posso dizer apenas de mim e da solidão na arte como um todo. Com a pandemia tudo ficou mais claro: amigos, afetos, conhecidos, parceiros de trabalho. A rede social se tornou a nossa ponte com o mundo. Estávamos vivendo cegos, surdos e mudos? Com quem se identificar? Com quem compartilhar? Somos realmente dois polos, direita e esquerda? Preto e branco? Hétero e homo? Vidas negras importam só agora? A arte salvará? Será que a arte realmente importa para uma sociedade como a nossa? Quantas pessoas irão morrer? Minha cabeça borbulhava.
Estava em cartaz com “O Mistério de Irma Vap”, em São Paulo, no Teatro Procópio Ferreira, quando tudo aconteceu. Tínhamos uma segunda temporada longa e promissora. Além da ‘Irma’, eu estrearia também em SP minha versão para do longa “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. Tudo pareceu, no início, algo que passaria rápido e indolor. Mas, não. Aos poucos, o mundo pereceu diante de uma grande crise envolvendo todos os setores e, principalmente, o da cultura.
Inventivos, como somos, começamos a invadir as redes com uma nova fórmula: o teatro filmado e ao vivo e também a live pelo Instagram. No meu caso, a produção do ‘Brilho Eterno’ teve a ideia de ensaiarmos pelo Zoom, aplicativo que agora, através do “Teatro Já” (do Petra Gold, no Leblon), leva o palco para quem nunca foi ao teatro. Dicotômico e controverso, essa é a forma mais objetiva de arte, porque precisa do aplauso, do calor da plateia, da respiração conjunta. Teríamos então uma nova forma de se fazer teatro?
Ensaiamos durante três meses o “Brilho Eterno”, mas, e agora? E o patrocínio? As empresas esperam pelo que vai acontecer e, com isso, as apostas e investimentos ficam à mercê dessa espera. ‘Poemas ao pé do ouvido’ foi um alívio para as noites de quarta e sábado, junto com amiga e atriz Lavínia Panunzzio. Uma live em que lemos poemas, contos, letras de músicas, peças de teatro, um suporte para enfrentar o momento.
O Teatro XP Investimentos me deu literalmente uma luz de esperança quando fizemos juntos “Uma lâmpada Acesa: O Teatro da Espera”, projeto cênico idealizado por mim junto com Luiz Guilherme Niemeyer, um dos sócios do teatro, e encabeçado por Leticia Spiller e Pablo Vares, meus irmãos na arte. Fizemos “Ensaio.Hamlet.Máquina” com fragmentos do texto do alemão Heiner Muller, e a ideia de se ter uma lâmpada acesa no centro do palco. Na época, o teatro não estava vazio, logo retomaria suas atividades. Respirei. O teatro começava, em abril, com o ‘novo normal’, termo que detesto. Pensava: quantas pessoas, sem serem da classe artística, assistiam às obras, nossa arte, nossa luta?
Não poderia esperar! Sou geminiano, com ascendente em escorpião. Então, dei início à adaptação para o teatro da obra de Dostoievsky “Crime e Castigo”. Mas, quando atravessava o trecho mais denso do texto, sofri de uma espécie de crise de pânico. Comecei a perder as forças. Não sou muito de me sentir vencido, mas o niilismo me acompanha, fato. Dei um tempo na adaptação, apesar de ter toda a encenação na cabeça e saber exatamente como ficará no teatro. Era a arte o meu combustível?
Tive que mudar, enfrentar a crise iminente. Dividir os pensamentos, criar novas possibilidades de me encarar, porque às vezes olhamos para o espelho e não nos vemos. Pensava no Brasil, no Golpe Militar, na minha infância, no que fiz para chegar aonde cheguei. Luta diária comigo mesmo, isso importa a quem? Era o início do poço. Acreditava que não poderia ser egoísta de pensar só em mim diante de tudo o que o mundo estava e está enfrentando. Como o teatro se espelha na vida e vice-versa.
Voltei a mim. Escrevi um curta dirigido, fotografado e feito pelo celular, no sítio de Leticia Spiller, junto a ela, a sua pequena Stella e Pablo Vares. Assim nasceu “Enquanto seu Lobo Não Vem”. Argumentei ainda minha série policial sobre comissários de bordo, “Check In”, que é uma aposta ao meu retorno às lentes.
Estamos às voltas com a reabertura dos teatros e penso: quem terá medo de ir a uma sala de teatro, para assistir, se deliciar com um trabalho, sentir o ator, sua emoção…? Tudo parece incerto e figurativo. Quantos técnicos dependem de empregos na nossa área para sobreviver? Quantos artistas já estão em outros lugares ou de volta às casas de seus familiares ou ainda, graças a um amigo, sendo protegidos desse momento? Uma coisa sei, como diz minha amada atriz Rosamaria Murtinho, “a arte é como erva daninha, arrancam, matam, mas ela sempre volta. Sempre estará ali”. Graças a Deus. Graças aos Deuses.
Nos últimos anos, o diretor, ator e figurinista Jorge Farjalla, 41 anos, enfileira sucessos. Foi vencedor do Shell paulista de melhor figurino por “Senhora dos Afogados” e do Prêmio Bibi Ferreira de melhor direção por “O Mistério de Irma Vap”, ambos em 2019. Também fez as montagens de “Doroteia”, “Vou Deixar de Ser Feliz por Medo de Ficar Triste”, e o documentário “O Cravo e a Rosa”.