Nunca imaginei que ir para a janela cantar fosse transformar não só a minha vida como também a de tantas pessoas. E penso: se fosse eu no outro lado e ouvisse uma vizinha cantar, será que eu ficaria tão emocionada? Talvez devido à fragilidade do momento? Minha relação com a música vem desde a infância, assim como minha relação com o bairro da Gávea, onde vivo desde que nasci. De repente, com a pandemia, essas raízes, já tão fortes, se aprofundaram ao mesmo tempo em que novas relações surgiram.
Neste período de confinamento, tenho cantado todos os dias, da minha janela para os vizinhos e para os seguidores virtuais, que se multiplicam. Sou cantora profissional, tenho uma orquestra, e trabalho com música ao vivo em diversos tipos de eventos, portanto, meu ofício de fato é cantar, mas essa ideia do canto na janela eu não a planejei, embora tivesse acompanhado os belos exemplos dos cantores nos balcões na Itália e em tantos outros lugares.
Até que, em um domingo, dia 22 de março, ouvi o sino do Convento das Clarissas tocando às 18h, mais alto do que nunca, rompendo o silêncio intenso do bairro esvaziado. Não me contive e fui para a janela apreciar e fazer uma oração. Desde pequena, aprendi com minha avó que toda vez que eu ouvisse um sino tocando, rezasse uma Ave Maria, costume que permanece em minha vida. Mas sou cantora e, por isso, a minha oração saiu em forma de música — Ave Maria de Gounod — sussurrada, quase inaudível, era só uma oração pessoal.
Quando terminei, uma vizinha em frente elogiou e pediu que eu cantasse mais alto. Cantei novamente, e aconteceu algo mágico: as pessoas começaram a aparecer nas janelas mansamente, sorrindo acenando, pareciam que estavam aguardando, precisando daquilo. A reação foi maravilhosa. De janela a janela, aos gritos mesmo, as pessoas se manifestavam: “Qual o seu nome?” “Qual o seu Instagram?”… Daquela tarde em diante, não parei mais. Já cantei 58 dias, todo dia, sempre às 18h, os mais variados estilos, atendendo a pedidos ou celebrando datas especiais. A reação e a receptividade impressionam-me.
Venho recebendo uma enxurrada de carinho em forma de mensagens, presentes e aplausos. Em uma das minhas “lives”, comentei que era meu aniversário de casamento e chegou um champanhe premiado na minha portaria! De uma vizinha que (ainda) não conheço! As pessoas escrevem relatando a transformação que meu canto trouxe, alguns em depressão, alegrando-se e aguardando a música.
Recebo poemas, cartas e principalmente muitos agradecimentos calorosos. E a surpresa incrível que fizeram semana passada: um grande coral formado por moradores de vários prédios cantando “Como é grande o meu amor por você”, com discurso amplificado de alguma janela agradecendo “por encantar nossos finais de tarde, todos os dias, dividindo seu grande talento com a gente, sua voz nos abraça, nos acolhe e nos traz esperança e o sentimento de que não estamos sozinhos nesta pandemia”. Fiquei muito emocionada.
Garanto que tudo isso me faz um bem enorme, tanto quanto aos que me ouvem. Não tenho dúvidas de que a arte está nos alimentando neste período tão difícil e tão triste e, por que não dizer, nos salvando. Todos buscamos, por meio da arte, seja uma música, um filme, um musical, exposições virtuais, um alento, paz em meio à tensão. É interessante esse paradoxo de que, no período em que estou presa em casa, eu esteja construindo novas amizades com vizinhos maravilhosos que ainda não conhecia. Tem sido uma experiência incrível. Fico pensando: eu nunca achei que poderia fazer nada pelos outros e descobri que posso, com a minha música. Talvez todos possam, de alguma maneira.
Juliana Sucupira é formada em Canto Lírico pela Faculdade de Música da UNIRIO e coordenadora do grupo Astorga Coral e Orquestra, levando música ao vivo para eventos. Durante esta quarentena, transformou-se na estrela do “Música na janela”, na Gávea. Foto: Danielle Medeiros.