Cheguei aos Estados Unidos, no final de fevereiro, para visitar minha filha, como sempre faço. No dia 4 de março, embarquei para New Orleans, onde fica sua universidade. Nessa data, soube-se do primeiro caso do estado de Nova York: um advogado que trabalhava em Manhattan e morava em New Rochelle. Não havia alarme, tudo continuava igual (bares, restaurantes e lojas); o metrô, o formigueiro de sempre. Sabia-se que a situação na Itália piorava, mas aqui tudo continuava tranquilo; o que se seguiu depois pode ser comparado a uma avalanche.
Em uma semana, tudo começou a piorar rapidamente, novos casos pipocavam e a contaminação aumentou de forma absurda. As aulas foram suspensas em todo o país, minha filha teve que se mudar, às pressas, da casa onde morava; a formatura foi cancelada, as aulas seriam online. Parecia que a vida estava puxando o freio de mão. A mudança dela chegou pela metade, tudo estava confuso e, no fim de semana, minha passagem de volta ao Rio foi cancelada pela American Airlines.
As notícias eram alarmantes e cada vez piores. Em dois dias, os voos tinham virado uma verdadeira lotação, com cinco empresas colocando gente de todo lado, feito sardinhas num avião, com as viagens demorando mais de 20 horas. Os voos diretos haviam acabado, e meu médico disse que o risco de fazer a viagem devido ao nível de contaminação naquele momento era muito grande, que eu estaria protegida se ficasse aqui em casa e sem sair, óbvio. Depois, todos foram cancelados. E assim, eu e Filippa ficamos presas.
Nesse momento, quando a decisão foi tomada, eu relaxei e me preparei então para o nossa quarentena. Comprei uma bike ergométrica e outros poucos equipamentos de ginástica, coloquei uma supertorneira que “faz tudo” na cozinha, comprei um conjunto novo de panelas, uma TV com todos os aplicativos, fiz uma megacompra de mercado e organizei nosso “bunker”. Consegui até ressuscitar meu gosto pela culinária e acho que ainda não repeti um prato. Me inscrevi também para um curso online com curadores do MoMa.
O prédio mudou as regras drasticamente — somente pessoas da mesma família podem, de agora em diante, andar no elevador, as entregas são deixadas na porta do lado de fora (não tem mais delivery de restaurantes entregues na porta); visitas, só se forem médicas e, quando a gente vai à portaria, parece até que está num cenário de guerra nuclear. Não se pode nem aproximar do porteiro ou pegar o correio com outra pessoa ao mesmo tempo na área. Todos de máscaras e luvas. Contato zero. Para lidar com essa pressão, o meu reflexo foi criar uma rotina aqui. Resolvo as coisas no Brasil, via WhatsApp; às 11.30, vemos o governador Andrew Cuomo para ficarmos a par da situação e respirar fundo até o próximo dia. A liderança dele é impressionante! A mesa de jantar virou “atelier”. Todos os dias, às 7 em ponto, batemos palmas para os profissionais da saúde, que têm sido uns heróis.
Houve momentos de muito medo, de angústia, e jamais vou me esquecer dos dias em que o barulho de ambulância era tal que ficou literalmente contínuo por horas — uma coisa apavorante. Na mesma semana, um hospital de campanha foi montado em pleno Central Park, ressignificando um espaço de prazer, leveza e alegria para um local de dor. Era impossível não perceber o movimento de guerra que acontecia à nossa volta, com médicos aposentados e estudantes de medicina e enfermagem sendo convocados para o “front”.
No meio de tanta dor, ver essa solidariedade foi muito bonito e emocionante. Eu ainda choro todos os dias quando vamos para a varanda bater palmas. Aliás, nova-iorquinos, que normalmente são frios e não dão muito papo, agora se cumprimentam nas janelas. Enquanto espero pra ver e torço pra sair viva desta, vou tentando tirar o melhor do pior, e pensando no dia em que vou poder voltar pra casa.