Semana passada, o colesterol ruim me chamou para uma conversa de homem pra homem.
Subi num banquinho para que pudéssemos ficar olhos nos olhos.
— Quando é que tu vai tomar vergonha nessa cara, Eduardo?
O meu colesterol ruim não é só ruim. É também mal-educado. E como começou a crescer assustadoramente nos últimos anos, deu de ficar arrogante.
Admito que eu o venho ignorando há algum tempo, o que não ajuda a melhorar nossa relação.
Não respondi. Baixei os olhos, falsamente envergonhado da minha própria negligência, e foi quando avistei, na altura do meu calcanhar, o colesterol bom.
Por pouco não o reconhecia. Da última vez que nos vimos, num exame feito em 2018, ele batia no joelho.
— Pô, Du, faz assim comigo não. Estou quase na lista das espécies em extinção…
O meu colesterol bom não é só bom. É bobo, vitimista. E como diminuiu muito nos últimos anos, deu de fazer chantagem.
Estávamos fechando um acordo, nós três, para tentar reduzir essas desigualdades endocrinológicas quando ouvi um gemido. Praticamente inaudível. Metade de um miado de lagartixa albina com crise de asma.
Era minha vitamina B12.
Nas últimas, coitada. Respirando por aparelhos.
Aí não teve jeito. Catei todo mundo, chamei a glicose, os triglicerídeos, a hemoglobina glicada, a testosterona livre e fomos ao médico.
Ele me olhou com a mesma cara com que o dentista me olha quando vou fazer limpeza de tártaro. Aquela expressão de quem perdeu a fé na espécie humana.
— Olha o estado dessa B12! Olha esse ferro, que não dá nem pra ferrugem! O que leva alguém nessa idade a ser vegetariano?
Relevei a ofensa. Médico carnívoro é assim mesmo. Se eu fosse explicar os conceitos de crueldade, especismo e senciência, estaria lá até agora, e o plano não cobre consulta com essa duração.
— Sr. Eduardo, para que o senhor acha que nós temos caninos?
Médicos carnívoros tendem a vir com sangue nos olhos quando descobrem que o paciente é vegetariano. Imagino o que sofra um vegano nas mãos dessa gente.
Ignorei a pergunta, até porque era retórica. E porque era evidente a intenção de ofender, me chamando de “senhor” (a diferença de idade nem era tanta). Deu vontade de dizer que há lugar melhor para cravar os caninos do que em animais mortos. Mas ele podia mencionar a baixa da testosterona, e não quis abrir mais um flanco na discussão.
Saí da consulta com a receita de um tal de Betrat — que deve tirar a B12 da UTI – e a recomendação de começar imediatamente a fazer atividades físicas.
I me di a ta men te, disse ele, separando as sílabas como se ainda estivéssemos no grupo escolar.
Quis fazer um agrado à testosterona, antes que ela me denunciasse por alienação hormonal, e fui dali para a academia. Contra todos os prognósticos e todas as evidências de que aquilo não ia dar certo, entrei e fiz a matrícula.
Nove da noite, estava lá, pronto para o sacrifício.
“É agora ou nunca!”, me animou o colesterol bom, se esticando na ponta dos pés para me dar um tapinha de incentivo na panturrilha.
Um instrutor com metade da minha altura e braços com o dobro do diâmetro da minha coxa me passou o que eles chamam no dialeto deles de “uma série”. (Acho que aquilo eram os braços, porque nunca vi ninguém com três troncos.)
Comecei com 15 minutos num tipo de esteira com pedal que tem mais comandos e luzinhas que um 747. Duas horas e meia depois olhei para o visor e ainda faltavam 10 minutos. Parei antes, e fui para a remada, o supino e uns outros dois para os quais a Convenção de Genebra precisa ser alertada.
Estou dolorido há uma semana. Só hoje vou conseguir voltar, assim que terminar de escrever a respeito.
Quem achar que é ficção, pode me procurar lá, daqui a meia hora.
Vai ser bem fácil encontrar.
Sou o único com camiseta no tamanho certo, não dois números abaixo.
O único com camiseta de manga.
O único que (ainda) não tira selfie na frente do espelho.
O único que não carrega mamadeira (que, em fitnês, se chama “squeeze”).
No próximo exame laboratorial, quero ver o colesterol ruim vir tirar onda pra cima de mim.