Sou Poeta – eis a minha ventura. Sou dada à luta “mais vã” (como bem disse Drummond): diante das asperezas do mundo e das ameaças múltiplas, empunho a palavra em estado de delírio nas mais altas temperaturas. Responder aos insultos com o tremor dos versos é o que me resta. Noves fora zero todas nos encontramos sob estado de sítio: é o cano a misoginia apontado ao céu da boca, é a pesada munição do racismo descarregada sob a cabeça, é a navalha da transfobia e lesbofobia arranhando a pele do rosto, é o genocídio batendo como vendaval nas comunidades indígenas. Ser mulher dói, apesar de não haver “igualdade” nas formas como somos oprimidas.
Desde 2020 me debruço sobre esses incômodos. A pandemia nos mostrou um imenso fosso entre mulheres divisando aquelas que poderiam se recolher em casa e as que precisavam girar as engrenagens nos subempregos ou nas informalidades. Esses corpos espantados nunca tiveram paz e desconhecem o sentido do descanso… Na minha ventura de poeta inflei os versos com essas agonias. Assim nasceu a performance Céu em Si.
Depois de dois anos de estudos e experimentações, “Céu em Si” estreou em 2022 e, desde então, venho circulando sem pausa (somente suspendendo as apresentações nas férias de final de ano). Essa não interrupção me espanta. A performance traz meus poemas autorais inéditos, mas também há espaço para textos que crio diante do público, no exato momento de cada apresentação. O espanto vem daí: em dois anos de circulação nunca me faltou matéria para improvisar textos sobre violências contra mulheres. A realidade tornou-se um triste e inesgotável acervo que nos fere todos os dias.
Depois das apresentações tenho ouvido relatos de mulheres que, ao pé do ouvido, me contam as violências e os abusos que sofreram, mas também suas histórias de resistência. Há sempre a lembrança de uma pessoa aliada, geralmente outra mulher que se tornou o sustentáculo para ativar o desejo de se manter viva. Não é tarefa fácil sonhar e projetar horizontes apaziguadores vivendo sob estado de sítio. No entanto, a raiz forte vem sempre de outra mulher: por vezes uma mais-velha que floresceu sempre-viva em meio aos desmoronamentos.
O espetáculo tem me ensinado bastante. Na performance há um momento em que entrego caixinhas de música para que o público faça a trilha sonora da cena. Lembro que numa apresentação em Jequié, Bahia, essa cena teve como trilha a delicadeza cortante das caixinhas formando sinfonia com um choro bem singelo de alguém que estava no teatro. Até as pausas da música dialogaram intensamente com o som das lágrimas que, depois, soube ser de uma mulher. Ela se identificou no momento da conversa com o público e disse que se sentiu acolhida naquele universo de delicadeza que a fez lembrar da mãe costureira (as caixinhas têm formato de máquinas de costura). Mas se o choro foi singelo, como pude ouvir?
Performar tem disso. O corpo em cena precisa estar entregue ao instante, ao imprevisível e daí virá o ritmo do texto, o movimento, o gesto. Naquela apresentação em Jequié (terra do poeta Waly Salomão) a sinfonia gestada por mãos de mulheres diversas consagrou o momento das sempre-vivas que brotaram no teatro. Eu poderia contar muitas histórias de instantes consagrados nesses dois anos de circulação. Termino este texto lembrando de só mais uma experiência compartilhada em Bodocó, sertão de Pernambuco.
Eu estava na terra da escritora Cida Pedrosa e naquela noite o público era basicamente formado por três turmas de Educação de Jovens e Adultos, sendo boa parte de alfabetizandos. Algumas daquelas pessoas estavam aprendendo a escrever os próprios nomes (algo que minhas mais-velhas não conseguiram alcançar). Depois da apresentação, um idoso (da turma de alfabetizandos) levantou do público e fez um relato “perdoando a própria mãe”. Era um homem de mais de 70 anos dizendo que a performance o desafiou a entender que sua mãe não tinha culpa por manter os filhos longe da escola. Aprender a manejar a terra era uma urgência nos seus tempos de infância e com isso o sonho de ir à escola foi adiado.
No entanto, ele estava ali, recompondo a sua história. Naquele momento a poesia era soletrada diante do meu corpo em estado performático. Novamente uma sinfonia se fez… e mais uma vez a memória de uma mulher sempre-viva estalou em exuberância diante de nós. Que não me falte sensibilidade para captar essas enormes singelezas.
Daniela Galdino é baiana de Itabuna (Sul da Bahia) e vive atualmente em Salvador. A poeta tem se dedicado, há 10 anos, ao mapeamento e publicação de escritoras nordestinas. Desse trabalho nasceu o circuito editorial “Profundanças”, que disponibiliza antologias literárias e fotográficas no https://profundancas.com/. “Céu em Si” vai ter apresentações no Sesc Tijuca, no sábado (19/10), às 17h.