De repente me veio à mente que tanto os principais narradores e protagonistas de Machado de Assis como os de Proust são figuras humanas que se assemelham em algo: estão sempre a receber o “não” da comunidade a que pertencem. Dizem-se “reclusos”, mas não o são tanto assim — regalam-se com a vida mundana. Os nãos que recebem são obstáculos à plena realização dos narradores e dos protagonistas. Pertencem a sociedades do impedimento (julgo impedimento um vocábulo mais rico de ressonâncias que preconceito, embora sejam sinônimos); sociedades que criam obstáculos para o que nasceu preto no Brasil e para o que nasceu gay na França. E todos como que se submetem a um forte sentimento comum, o ciúme. Os nãos, de caráter social e econômico, traduzem-se, na intimidade da personalidade de uns e de outros, pelas crises de ciúme — algo que vem de fora vem de dentro também. O ciúme é real, isto é, faz parte da personalidade do romancista carioca, e é também social e econômico, faz parte da sociedade de corte escravocrata.
O Brasil colonial se emancipa junto com a Família Real de Bragança a criar o galho da Família Real Brasileira. Muitas vezes, ao ler as “Memórias Póstumas”, esquecemos que o casal é composto de Lobo Neves e Virgília, marquês e marquesa. Do casal de nobres faz parte Brás Cubas, o amante que, sem deixar família, nunca chegou a ser ministro de Estado e muito menos foi agraciado com o título de marquês. O título do último capítulo do romance, “Das negativas”, evidencia os impedimentos. Se se colocasse de um lado o legado de Machado de Assis e, do outro, o de Marcel Proust, tudo indicaria que não faria sentido contrastar as respectivas obras geniais. O primeiro deixa uma obra que tem sido lida pela melhor crítica sociológica brasileira e internacional, e o outro se afirma como sendo o responsável pelo máximo que pode atingir uma longa narrativa subjetiva e introspectiva. Pensei que Machado nos revelava, nos seus cinco principais romances (Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires), uma escondida “sociedade de corte” no século XIX do Novo Mundo, a brasileira monárquica e escravocrata, enquanto Proust catava os cacos que restavam da realeza francesa.
O inviável se torna viável desde que se leia Machado pelo legado proustiano e Proust, pelo legado machadiano, procurando encontrar em ambos os principais pontos de força e de vulnerabilidade que também são os meus, de responsável por uma leitura em fragmentos de questões julgadas improváveis pela tradição ocidental.
Trata-se de um projeto para jovem que, no counting-down da vida, decidi assumir. Não será entregue ao leitor como um livro acabado, mas como uma série de cadernos que serão escritos até o momento em que… Reticências que ofereço ao velho diálogo entre o homem e a morte, em tudo por tudo, semelhantes às reticências que se encontram no velho diálogo entre Adão e Eva, das “Memórias Póstumas”. Machado e eu recorremos às reticências porque as palavras de um diálogo e do outro são conhecidas, bem conhecidas: amor e morte. O difícil é vivê-las no momento em que estão acontecendo. Num diálogo e no outro, como se chegar à alegria de viver?
Silviano Santiago é escritor, professor, pensador, poeta, tradutor, com mais de 30 livros publicados e inúmeros prêmios (Oceanos, Machado de Assis, Jabuti [três], Casa das Américas, Faz Diferença, Camões). Silviano lança “O grande relógio — A que hora o mundo recomeça” (tríade de ensaios) na Travessa de Ipanema, nesta segunda (30/09), às 19h. Um dia antes, comemora seus 88 anos.