Todos os dias sonho com meus pais. E digo “todos os dias”, não “todas as noites”, porque eles só me aparecem nos cochilos de depois do almoço (poderia dizer que vêm na hora da sesta, mas esse cochilo ao meio-dia — “à hora sexta”, no dizer dos romanos – me evoca descanso, relaxamento, não entrega à exaustão).
Fantasmas, creio eu, desprezam o sono químico, o sonho trazido a fórceps. Mesmo Hipnos e Morfeu devem me acolher contrariados, eis que chego a seus domínios noturnos como um refém — as mãos atadas pela eszopiclona e os olhos vendados de clonazepam.
É bem diferente quando me rendo, o sol a pino, ao deus — sem nome – do cansaço.
São quinze minutos, não mais que meia-hora – aproveitando uma trégua involuntária nos gritos do instrutor de tênis na quadra, no Sísifo que arrasta móveis diuturnamente no andar de cima, na vizinha cujo celular esgota a bateria – para poder também ele respirar – e ela então se cala por alguns instantes.
Como num acesso de narcolepsia anunciada, deito a cabeça no travesseiro, me viro sobre o lado esquerdo (menos para sentir o coração, mais para evitar a claridade – ou, quem sabe, o contrário) e eles surgem.
Nunca idosos, nunca doentes, nunca indiferentes num caixão. Não sei com que idade surgirão, mas escolhem uma em que sejam pai e mãe, por inteiro. Então brigamos, como brigam pais e filhos. E eu lhes pergunto coisas que ainda não sei que saberei um dia, mas que eles – que, afinal, são pais – terão sabido desde sempre. Eu os beijo e abraço, lhes conto do meu dia, às vezes ponho meu pai a par de alguma novidade da política, às vezes é à minha mãe que informo de algo que vi ou ouvi e que me terá feito lembrar dela. Frequentemente, é nessa hora que me dou conta de que estão mortos, ou eu não precisaria lhes contar nada: teriam sabido pela televisão, pelo jornal, pela vida.
Como lhes dizer que morreram? Que nunca mais haverá brigas reais, nem um maço de notas entregue meio às escondidas “para você comer alguma coisa no caminho”, ou um silêncio lembrando que há coisas mais eloquentes quando não ditas?
Vem então a parte que me faz despertar: e se eu lhes disser que estão mortos, e eles – com o olhar que têm os pais – me confirmarem que o morto ali sou eu?
Acordo, trazido à tona por uma espécie de angústia libertadora, e olho o celular, na mesa de cabeceira. Hoje a visita foi breve, ontem tiveram mais paciência comigo. Talvez amanhã minha mãe prepare brevidades, suspiros e sagu, talvez meu pai um dia ainda diga que me leu. Estaremos comendo caju pela primeira vez, ou buscando o martelo para abrir a caixa de uva descida agorinha mesmo do caminhão, na rua empoeirada. Reconhecerei o vestido estampado da minha mãe, desejarei as abotoaduras do meu pai. Serão mais jovens do que eu – e, ainda assim, mais altos, mais fortes, mais seguros.
É a noite invariavelmente mal dormida que me empurra para esse breve encontro, na brecha de fadiga e silêncio que se abre à hora sexta (à hora terça as velhinhas estarão gritando na piscina, à hora nona serão as crianças no play, nas Vésperas haverá o pancadão dos crosfiteiros).
Já foi minha avó essa visita constante, até que outros mortos lhe permitissem descansar. Hoje são meus pais os fantasmas diurnos – até que um dia se faça o silêncio, e eu – que “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” – me torne fantasma de ninguém.