Aprendi com meu pai que não basta ser honesto: é preciso também parecer honesto. Depois soube que a frase não era dele, mas não fez diferença: levou tempo para eu captar a mensagem.
Aprendi com minha mãe a não quebrar os ovos diretamente na frigideira ou onde quer que os fosse usar. Parecia um ritual desprovido de sentido aquele de bater o ovo na quina da pia, romper (graciosamente) a casca com os polegares e despejar o conteúdo áureo-cristalino numa xícara para, só então, conduzi-lo a seu destino final.
Aprendi com meu pai a distribuir o peso da bagagem no porta-malas. Tudo tinha o seu lugar exato, e se encaixava como um Tetris (melhor: se encaixaria, se o jogo existisse naquela época). Cada volume era sopesado e seu lugar solenemente decidido, com aquele olhar salomônico que os juízes devem ter já de nascença. Ele também nos distribuía no banco traseiro, a mim e a meus irmãos, como se fôssemos carga viva (e éramos). Ali eu me tornava apenas o mais pesado, sem acesso natural à janela por direito de progenitura. Aprendi, ainda, que nenhuma caixa viajaria solta no bagageiro. Que sempre deveria haver, a bordo, uma lanterna, uma toalha de rosto, um rolo de papel higiênico — e um revólver.
Aprendi com minha mãe que uma roupa bem-feita se conhece pelo avesso. Que o cerzido tem de ser invisível também do lado que ninguém enxerga. Que não há economia de tecido (minha mãe não dizia “pano”: dizia “tecido”) que justifique um bolso com padronagem desencontrada do restante da camisa. Mas que sempre se pode juntar depois as sobras e fazer mangas, lapelas, punhos, colarinhos, para que nada se perca.
Aprendi com meu pai que um texto merece estar não apenas bem escrito, mas bem formatado. Ainda nos tempos da Remington, era preciso manter os parágrafos alinhados à direita e à esquerda. O que hoje os PCs fazem a um toque de Ctrl + J (“justificar”) era obtido contando as letras que faltavam para o fim de cada linha, a fim de permitir a separação da sílaba (separava-se sílaba, naquela época). Se isso fosse impossível, os espaços eram comprimidos ou dilatados, na munheca. Cada sentença – fosse a oração ou a “decisão dada por uma autoridade a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição; pronunciação da autoridade sobre fato que lhe é submetido” — tinha de ser impecável.
Aprendi com minha mãe que não se come com os cotovelos apoiados sobre a mesa. Que é o garfo que vai à boca, não a boca ao garfo. Que não se repete sobremesa. Que é preciso deixar um tantinho no prato, para mostrar que houve comida suficiente.
Entendi meu pai e sua meticulosidade com a bagagem quando, numa curva, uma caixa pesada se deslocou no porta-malas e quase perdi o controle do carro. Entendi minha mãe na primeira vez em que quebrei um ovo choco na frigideira onde já havia outros tantos.
Foi só na faculdade, quando a Bauhaus colocou tudo em termos de forma e função, que entendi meu pai e minha mãe quanto a Deus, o diabo e todas as legiões de anjos, celestiais ou caídos, morarem nos detalhes — sejam os do texto limpo, sejam os da etiqueta à mesa.
Entendi meu pai quanto a ser honesto e parecer honesto mais ou menos ao mesmo tempo em que entendi minha mãe quanto ao avesso merecer o mesmo cuidado que o direito.
Talvez pudessem ter me ensinado de outra forma, e eu não tivesse de ter errado para aprender. Talvez sequer soubessem que estavam me ensinando: agiam e eu os observava, armazenando — como os esquilos armazenam nozes, como cães enterram ossos no quintal — para consumir depois.
Ainda não foi preciso descobrir para que serve o revólver no porta-luvas. Ou por que não se pode repetir a sobremesa. Talvez essas duas coisas estejam relacionadas, como Yin e Yang, como Eros e Tânatos. Talvez os pais nos ensinem mais do que possamos usar numa vida.