Há quem seja “color blind” (incapaz de distinguir certas cores ou, mais raramente, qualquer tipo de cor. O termo se aplica tanto a quem não consegue mesmo identificar cores quanto a quem não discrimina ninguém em função da cor da pele – e, por isso, também é chamado de racista, porque “quem não vê cor, não vê luta”. Vá entender).
Eu sou “car blind”. Não completamente (talvez seja apenas “car míope”), porque consigo distinguir um fusca de um ônibus, um caminhão de uma kombi. E talvez – talvez! –um Gordini, um calhambeque, uma ambulância. Passou disso, para mim é tudo “carro”.
Com algum treino, sei que sou capaz de dizer se um bicho é um jacaré ou um crocodilo, um camelo ou um dromedário, um lulu da Pomerânia ou um diabo da Tasmânia. Porém, sete vidas eu tivera, em nenhuma delas veria qualquer diferença entre um Jetta e um Audi A3, um Argo de um Sandero ou um Nebula GT de um Zephyr (esses dois últimos eu inventei agora, e tenho certeza de que os confundiria com os outros, de qualquer maneira).
Minha maior dificuldade, quando chego ao estacionamento, é atender à sugestão do funcionário (“Pode deixar atrás do Onix prata”). Prata eu até identifico – e para por aí. ”Chefia, o senhor deixou do lado do Corolla”, “É, achei melhor”, “Mas lá bate sol a tarde toda”, “Sol tem vitamina B12, é bom para não enferrujar a lataria” – e lá vou eu, eternamente grato à Nossa Senhora da Chave com Alerta Sonoro, que me poupará de ter que, na volta, ficar procurando o meu carro pela placa. Sim, porque ele também é igual a todos os outros.
Quem dera carro fosse o único problema. Não chego a ser “wine blind”, porque distingo um tinto de um branco só de olhar. Mas ninguém me convence de que haja diferença significativa entre um merlot, um tannat e um chardonnay, por exemplo.
Depois que as turmas das oficinas literárias me deram de presente uma assinatura de vinhos (chegam duas garrafas, todos os meses), eu já prefiro um malbec a um Sangue de Boi, e um pinot noir a um daqueles de Campo Largo. Mas isso, evidentemente, depois de ver o rótulo.
Por outro lado, consigo, olhando uma construção qualquer, saber se foi projetada por arquiteto ou por engenheiro. Pelo ritmo da obra, qual foi o tipo de empreitada. Pela quantidade de aditivos contratuais, se a licitação foi feita com projeto básico ou executivo. Pela forma de tratar o cônjuge (“meu marido, minha mulher” ou “meu esposo, minha esposa”), qual a religião do casal. Pelo vocabulário (“jornada”, “patriota”, “saberes”, “decolonial”, “pró-vida”), em quem a pessoa votou nas últimas eleições.
Quanto aos carros, se um dia eu for atropelado (já fui, uma vez), me pergunte quantos significados tem a palavra “trem” em Minas, por que há tantos porquês na língua portuguesa ou qual o CPF de quem morreu na Guerra de Tróia – mas não queira saber de que marca ou modelo era o bólido assassino. Como da outra vez, vou ficar sem fazer o B.O. – porque tudo o que saberei dizer é que tinha lataria, farol e – acho – quatro rodas.
A menos, claro, que tenha sido um ônibus, uma Kombi, um calhambeque, um fusca, uma ambulância ou um caminhão. Talvez também um jipe – mas só se for daqueles verdes, com capota de lona, dos anos 60.