Não há como eu, mulher negra, pensar em maternidade sem dar-me conta de que sou uma intelectual preta e pari um filho loiro. E, falando em maternidade e feminismo, hei de pensar aqui na luta feminista de uma mulher negra, pois, a priori, há a necessidade intrínseca às mulheres negras de lutar contra o poder racista colonial antes mesmo de pensar na necessidade do feminismo, já que a intelectualidade foi, historicamente, negada ao povo preto. Portanto há de haver, primeiro, a desescravização das mentes negras, para depois poder-se pensar nos seus corpos.
O Dia das Mães deveria ser uma data política, na luta de igualdade entre a maternidade e a paternidade, sobretudo, o que é conhecido como feminismos plurais — a inserção dos corpos negros na luta biológica e trabalhista da posse feminina sobre os seus próprios corpos e direitos. Os corpos femininos foram, historicamente, massacrados pelo poder patriarcal. E, para as mulheres negras, existe, anterior à luta feminista, a luta pelo direito de pensar. A maternidade é absurdamente romantizada, por si só, ao longo da história. Basta pensarmos que ela é uma imposição social, a ponto que a paternidade é uma mera escolha pessoal, mesmo para os homens fatidicamente já “pais” — ponho entre aspas porque conheço poucos homens, ou talvez nenhum, que, de fato, assuma a responsabilidade paternal como um todo. Majoritariamente, as crianças negras são as que mais sofrem com a ausência paterna. No entanto, as mães jamais deixarão de ser mães, mesmo que abandonem seus filhos na porta de uma igreja, ou os percam, ainda recém-nascidos. E aqui não há um juízo de valor: esse “ser mãe” diz respeito ao que Freud nomeou como sendo a maternidade inerente à feminilidade. Falo do poder patriarcal como fonte da eterna culpa materna — uma posse dos corpos, anseios, sonhos e subjetividade das mulheres.
Eu tive uma gravidez bastante desequilibrada: insônia, angústia e uma inquietação de deixar qualquer mente exaurida. Lembro-me, ainda ressentida, do quanto a solidão me consumiu; eu não tinha o direito de verbalizar a minha depressão gestacional devido à imensa romantização da “melhor fase da minha vida”, a gravidez. O meu maior pavor era a possibilidade de não poder suprir as necessidades básicas do meu filho. Eu acordava à noite, encharcada de suor e lágrimas; isso me apavorou durante toda a gestação. Eu tinha medo de que ele viesse a passar fome, como eu passei. Eu berrava, aos prantos: “Como vou pagar as fraldas dele?”. Isso foi um pesadelo fictício, que só foi visto como ficção dramática, depois que eu pari. Ali, dei-me conta de que esse medo era uma paranoia, fruto da minha sobrevivência de miserável social, na infância.
Ali, tornei-me veridicamente uma feminista; até então, eu era apenas uma antirracista. Li muito Freud e Simone de Beauvoir, leituras distintas. No entanto, elas supriram-me fortemente, naquele momento de solidão constante: a maternidade é muito solitária. De modo que a depressão, na gestação, levou-me a descobrir onde nasce a culpa materna. E, logo, houve a necessidade de adentrar na minha psiquê. Daí, essa junção entre feminismo e inconsciente fez-me um pilar de sobrevivência para aquele meu pavor berrante da possibilidade da fome do meu filho.
Hoje, o Ludwig está com 1 ano 8 meses. E digo que construímos um amor genuíno, o que me deixa bastante aliviada, pois eu tinha medo de não conseguir amá-lo. Mas ninguém ama o desconhecido. Tem um alívio ainda maior do que a minha capacidade de amá-lo — o alivio de saber que, por mais antirracista que eu seja, não poderia privá-lo de sofrer com o racismo, como eu sofro. Portanto, viva o black-power dourado do Ludwig.
Sigamos! Eu, com a responsabilidade de torná-lo um ser meramente íntegro com a consciência de que, independentemente da sua realidade social ou cor de pele, ele é filho de uma mulher preta que passou fome, e com a consciência de que a mãinha não estará sempre ao seu lado. Portanto, a minha luta antirracista é inerente, também, à história do filho.
Polidamente,
Lilia Refle é escritora, tradutora de português/alemão, formada em Letras na PUC-Rio. Autora dos romances: “Inquieta”, “Primeiro amor” e o polêmico “A puta religiosa”.
Foto: Selmy Yassuda