Salve Jorge: cantando a energia sagrada de Ogum
João Nogueira, um dos maiores compositores da história da música brasileira, certa vez, profetizou em seus versos: “ninguém faz samba só porque prefere”. Para ele, o samba era presente divino, inspiração do intangível, suspiro ancestral.
Ao iniciar minha caminhada no mundo da composição, me identifico com Nogueira ao entender o samba como reza, como sopro, como intuição. Mais especificamente, o samba tem sido para mim a trilha sonora que promove meu encontro com os orixás e a espiritualidade que governa os meus caminhos.
Exu, o dono das encruzilhadas, e Ogum, o senhor das contendas, têm sido as grandes sentinelas da minha jornada como sambista. Honrando essas duas energias sagradas, concebi, em 2022, o projeto Samba pra Rua, que circula pelos bairros de Salvador, reivindicando a rua como um espaço de liberdade para as pessoas negras.
Nessa caminhada, tenho entendido que compor é não só um ato de fé, como também um ato político. Afinal, a música é um artefato de mobilização: inspira afetos, eterniza memórias, embala resistências. Nesse horizonte, ser compositora é ter voz e, acima de tudo, ser capaz de assinar uma perspectiva que ecoa no mundo em forma de som. A arte da composição é, portanto, um exercício que alia inspiração, talento e poder — um poder que foi historicamente usurpado das mãos de mulheres negras, como eu.
Além disso, compor músicas que transitam pela temática das religiões de matriz africana, no Brasil, é resistência: a resistência contra o racismo religioso, que insiste em violar terreiros em todo o país; a resistência que nos lembra que o samba é herdeiro direto desses espaços e deve a estes, portanto, reverência.
Talvez, por isso, Ogum seja um arquétipo tão celebrado no meio musical e, em especial, no samba. Nomes, como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Leci Brandão, por exemplo, e tantos outros sambistas já cantaram em seu nome.
Isso porque louvar Ogum é reconhecer a energia das contendas, das batalhas. Trata-se da expressão última da guerra, que tem a paz como horizonte final em um mundo ainda feito de tantas injustiças.
Hoje me junto humildemente a esse grande panteão do samba, ao assinar mais uma composição em homenagem ao senhor dos grandes combates. A música “7 toques pra Ogum”, gravada pelo grupo Samba pra Rua, com vocal de Aisha Araújo e participação de Marilia Sodré, chega ao mundo nesse 23 de abril.
Esse dia é dedicado a São Jorge, o santo guerreiro que, no Rio de Janeiro, foi sincretizado com Ogum nos terreiros de Umbanda. A história mitológica de São Jorge o registra como um militar romano que se recusou a matar cristãos; por isso, foi executado. O arquétipo do guerreiro que luta pelas causas justas e se recusa a empreender atos de covardia fez com que ele fosse aproximado à figura grandiosa de Ogum.
Seguindo a tradição, hoje, feriado no Estado do Rio de Janeiro, é dia de roda de samba com feijoada, um prato servido na tradição religiosa ao orixá da guerra e que também se faz presente na celebração da cultura do samba.
Para mim, hoje é dia de agradecer. Agradecer pelos afetos que o samba vai construindo na minha vida, por ser parideira de músicas e por ser zelada por energias sagradas — em especial, a de Ogum, que, além de meu protetor, meu abrigo e meu chão, é, como registrado na música, o grande “dono do meu coração”.
Ana Flauzina é doutora em Direito pela American University Washington College of Law, com pós-doutorado em Estudos Africanos e da Diáspora Africana pela UT Austin, Texas, Estados Unidos. É professora-adjunta da Universidade Federal da Bahia e autora de diversos livros e coletâneas, como “Corpo Negro Caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro”. É também compositora, usa sua voz e sua arte contra o racismo e o sexismo no Brasil. “7 Toques para Ogum”, novo single do grupo Samba pra Rua, de autoria de Ana Flauzina, está disponível a partir desta terça-feira, dia de São Jorge, nas principais plataformas digitais.