Construir pontes, baixar muralhas, uma estrada feita de tábuas sagradas e, também, porcelanatos.
Debutei como atriz, interpretando a dona de um saloon em um faroeste musical. Eu era pré-adolescente e fazia teatro amador no auditório da escola. Corriam, então, os anos 1980, quando crianças representando cafetinas e suas funcionárias eram consideradas jocosas. A personagem chamava-se dona Cafeteira e o texto, “Tribobó City”, de Maria Clara Machado e o professor, Almir Telles, ambos indivíduos de teatro responsáveis pela iniciação de toda uma geração de atores da Zona Sul carioca nas magias do palco, seja no colégio São Vicente de Paulo, onde Almir mantinha sua gira, seja no histórico Tablado, teatro-escola fundado por Maria Clara.
Formação é coisa que não para. Cursei cenografia, mas me formei mesmo foi como atriz. Em 2004, concluí o curso de atuação pela Casa das Artes de Laranjeiras (Cal) e, em 2010, me tornei bacharel em Estética e Teoria do Teatro pela, salve-salve-o-ensino-superior- público-no-Brasil, UNIRIO.
Esse preâmbulo é menos para exibir credenciais e mais para medir o tempo – o tempo que o teatro tem nos meus ossos, coração e veias. A vida é coisa que não para também; há quem afirme que não cessa nem depois do fim. E assim, lá se vão quatro décadas trafegando em trajetória, não linear, pelo universo teatral, ou como estudante, atriz amadora, profissional, diretora, autora, figurinista, produtora, teórica, fazedora de vídeos, ou distribuidora de flyers.
Flyer é um papel antigo com informações das peças, usado em tempos remotos, para divulgar trabalhos. Esses papéis eram impressos em uma gráfica e entregues diretamente na mão das pessoas que andavam pelas ruas da cidade.
Já fiz peça no interior, na capital, em teatros históricos, teatros badalados, teatros meigos, teatros às moscas e teatros já mortos. Já fiz peça em igreja, em porão, em salas de projeção, sala de casa, trem desativado, galeria de arte, na comunidade, na praia, mais precisamente, na sacada do posto 9, no Brasil e no seu contrário.
Teatro se faz onde se inventa de fazer.
Não tem lugar propício para se fazer uma peça, tanto que tem gente que faz teatro dentro de carro, de piscina, oficina, celeiro, avião, bar, barco, cinema, cemitério, hospital, garagem, barraca de camping, delegacia, penitenciária, na Baía de Guanabara ou no Rio Tietê. As origens do teatro de rua remontam à Antiguidade Clássica, na Grécia. A “Commedia Dell’ Arte”, muito popular na Europa entre os séculos XVI e XVII, acontecia nas praças, na parte de trás de carroças, carroças essas que me lembram os trailers dos circos. Circo é uma espécie de teatro itinerante que viaja por debaixo da terra, costuma brotar em descampados e desabrocha em flor imensa de nome Lona. Nessa flor, os moradores das redondezas vêm fruir do mais puro mel. Depois de saciar a população local, a flor desce de volta para a terra, até ressurgir em outras paragens, espalhar seu néctar, sumir, aparecer e assim, sucessivamente.
Como dizia, a lenda do teatro britânico, Peter Brook, “posso pegar qualquer espaço vazio e chamá-lo de palco. Alguém atravessa esse espaço vazio enquanto outro assiste, e isso é suficiente para começar o ato teatral”.
Peter Brook, um dos mais influentes diretores do século XX, inventou um teatro que era delimitado por um simples tapete estendido no chão. Em turnê com sua trupe pelos vilarejos da África, na década de 1970, um tapete era o único demarcador do espaço simbólico – um tapete, claramente, voador.
Por cima do tapete, passa Hamlet, passa Édipo, passa o Mahabharata inteiro.
As artes cênicas transbordam para além da caixa cênica e expandem as fronteiras da teatralidade, não apenas se apropriando de espaços, como também criando espaços. Cindindo a realidade ordinária, o teatro gera bolsões, dimensões paralelas que se manifestam em meio ao rotineiro.
Os atores, dramaturgos e diretores são como feiticeiros, xamãs, pajés, uma tribo que opera como janela, entre o mundo do real e o mundo do imaginário.
O teatro é um portal que se abre onde ele quiser.
O teatro une, transfigura, alimenta e alivia.
O teatro constrói pontes e baixa muralhas, ou deveria.
E eis que, em pleno abril do ano de 2024 da era cristã, encontramo-nos, eu e minha trupe (não sou Peter Brook, mas também tenho a minha), às vésperas de mais uma estreia. Toda estreia é especial; a de agora é grandiosa. Literalmente, muito grande. Chegou a hora de encenarmos nosso musical infantil, “Bita e a Imaginação que Sumiu” na mastodôntica Cidade das Artes Bibi Ferreira, centro cultural que se abre em gomos no coração da Barra da Tijuca. Ocuparemos a Grande Sala da casa com seus singelos 1.235 lugares.
Li na Wikipedia que a localização da obra, iniciada em 2002 e inaugurada em 2013, foi questionada, visto que alguns consideravam que o local escolhido deveria ter abrigado uma estação de metrô ligada ao Terminal Alvorada. Eu já acho o contrário: o papel do coração não é espalhar vitalidade por todo o corpo social? Assim, a Cidade das Artes encontra-se perfeitamente posicionada para a sua missão de levar oxigênio para a região.
Para quem quiser chegar lá de forma fácil, desde 2016, a prefeitura inaugurou, no Jardim Oceânico, estação de metrô que se liga ao terminal, unido este por um acesso subterrâneo ao complexo cultural.
A gente de teatro frequenta todo tipo de teatro — é o caso desse trabalho. “Bita e a Imaginação que Sumiu” encontra-se há sete anos em cartaz, já se apresentou em inúmeros espaços, em diferentes cidades do Brasil. A equipe é testemunha do tempo que passa entre nós, e os primeiros bebês que assistiram à peça já falam, andam e possuem agendas com muitos compromissos.
Retornamos ao Rio com alegria. Confesso que dá muita dignidade ao artista de teatro poder apresentar a sua obra em um endereço como esse. Eu, pelo menos, estou me sentindo agraciada: uma sala lindamente arquitetada, bem equipada, cheia de história e funcionários gentis.
Ouvi dizer que os teatros andam lotados — fenômeno mezzo pós-pandêmico, mezzo a outra face da moeda do avanço (irremediável?) da cultura virtual. Dizem que as pessoas querem estar juntas, fisicamente debaixo do mesmo teto, sentindo a flor da vida na própria carne.
Sou muito grata a todos os espaços que o teatro me abriu, a todos os espaços teatrais que se abriram para mim e àquilo que o teatro abriu em mim.
Hoje, 1.235 pessoas, amanhã quem saberá?
Vá de metrô, de carro ou asa delta, mas vá ao teatro.
Vá ao teatro e me chame.
Alessandra Colasanti é diretora, autora e atriz. Atualmente dirige o musical infantil “Bita e a Imaginação que Sumiu”, 7 anos em cartaz pelo Brasil, que está de volta aos palcos cariocas na Cidade das Artes Bibi Ferreira, neste sábado (06/04), às 15h, e vai até 28 de abril (sempre aos sábados e domingos). Dirige também o novo show da cantora Silvia Machete, “Invisible Woman”, com estreia em abril, em Belo Horizonte.