Portela, Portela, Portela! Repito seu nome muitas vezes até confundir o significado. Portela! Portela, o que é? É a porta pequena, a estreita passagem; é a curva apertada, o cotovelo no caminho, a garganta e o passo. Portela é azul, azul, azul! Azul que não é do céu, nem é do mar. Portela é a morada do samba. Casa de Paulo e Paulinho, Aniceto e Alvaiade, Manacéa e Monarco, de Noca, Wilson, Candeia, Picolino e Casquinha. Fica em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira, o endereço de gente que fez fama e nome contando histórias. Nossas histórias. Pois a Portela abriu agora suas portas, imensas portas, feitas com as asas da águia, para acolher mais um contador. Uma contadora, uma mulher encantadora de palavras: Ana Maria Gonçalves. Salve o manto azul e branco da Portela!
Antes de seguir em frente e tratar do que me será mais importante aqui, preciso fazer um esclarecimento com jeito de pedido de licença bem educado: fui criado em roda de samba e de choro. Meu pai, de apelido Manóca, tocava um respeitado violão de sete cordas e, desde muito cedo, me educou na boa cartilha de Pixinguinha, Nazareth, Jacob, Waldir, Noel, Cartola, Nelson, Candeia, Paulinho… Eu aprendi a recitar seus nomes, lendo os versos dos discos (ninguém falava vinil naquela época) da Odeon, da Marcus Pereira e da RCA Camden. Foram meus primeiros heróis, antes do Batman e do Super-Homem.
Ganhei meu primeiro cavaquinho quando era bem moleque, 8 anos, se tanto. Me atrevi a fazer o dó maior depois da primeira instrução de meu pai. Deu certo. Seu Manoca riu e pegou o violão para me mostrar como ficava tocar junto. Gostei. Era o samba fazendo alvorada, e meu coração conquistou; logo passei a preferir o solo ao acompanhamento. Achava bonito ficar no meio dos instrumentos, puxando Doce de Coco, Lamento, Brasileirinho, e ver os olhos de meu pai brilhando. Às vezes chamava minha atenção. Dizia: “Olha o ritmo!, Ré maior!, Ré maior!”, essas coisas. Ele me olhava com amor e orgulho, eu fazia o mesmo com ele. Mas Seu Manóca morreu e meu cavaquinho pega poeira no canto da sala.
Bom… Quis contar isso agora porque achei necessário. E espero que o leitor concorde comigo. Como disse antes, é um pedido bem educado de licença porque, apesar de saber um pouco do assunto, não escrevo sobre música, não pesquiso carnaval, nem arranhar o ré-sol-si-ré do cavaco me atrevo mais. E como não sou metido a falar do que não entendo… Pois é, achei de estudar História, Literatura, Religião de Orixá na Diáspora e Flosofia. Tinha eu que ser doutor. Então peço permissão à Majestade do Samba para falar sobre o enredo da Portela deste ano esperançoso de 2024, o livro que foi sua inspiração e a autora que o escreveu. Faço assim, com todo o respeito, sem a pretensão dos entendedores do pingo e da letra, sem chapéu de lado, sem tamanco arrastando, sem lenço no pescoço, porque “malandro é malandro e mané é mané”.
Tive notícia de “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, ainda no ano de seu lançamento, em 2013. Foi através de uma amiga da UFRJ que tomou o livro para sua tese de doutorado. Quem conhece os pesquisadores, não importando a área que pertençam seus corações valentes, sabe que pode ser temerário fazer a pergunta “E a tese?”, ou “Como vai a pesquisa?”. Esse gesto inocente de amizade e compaixão, porém, pode provocar reações adversas. Falo de crises de ansiedade, ataques de pânico, mau súbito, desmaio e convulsão espasmódica. Não era esse o caso da minha amiga querida. Mas ela apresentava outros sintomas, igualmente preocupantes e, do mesmo modo, bem típicos dos doutorandos, quais sejam: o exagero eufórico, uma certa tendência dissociativa da realidade, revelando o que em outras circunstâncias poderia ser qualificado como a mais sincera esquizofrenia. Parece exagero. E talvez seja. Mas é fato que muitos desses valorosos especialistas adquirem estranhos hábitos e traços de personalidade, que se estabelecem ou não no curso de suas vidas miseráveis. O tratamento costuma durar quatro ou cinco anos, e a cura — quando ocorre cura — é a defesa da tese. Mas isso não tem nada a ver com o que quero contar aqui.
Aquela amiga que me indicou a leitura de “Um defeito de cor” falava com tal entusiasmo varonil que me deixou a pulga atrás da orelha. Confesso. Ela me falava com uma expressão messiânica no rosto, que fazia lembrar a do Antônio Conselheiro e do Beato José Maria, mesmo que não os tenha visto de perto. Minha amiga contava das gêmeas, dos Ibejis, dos deuses africanos que – ela sabia – eu creio com amor e estudo com devoção obsessiva; dizia da escravidão e seus horrores insuperáveis, do navio negreiro, dos pretos de Salvador… Eu ouvia com moderação, um sorriso na cara e uma concordância gentil que me obrigava a boa educação e também o interesse comum pelos assuntos que ela ia listando. Mas não foi suficiente para me colocar sentado em um canto da casa e enfrentar as 947 páginas do livro. Erro meu.
O tempo passou, e outra amiga me trouxe de presente o grosso volume de Ana Maria Gonçalves. Eu, que sou adestrado nas artes da apofenia, e sou dado a interpretar eventos aparentemente sem conexão como sintomas de um sistema misterioso que vai se formando bem diante de nossos olhos crédulos, eu entendi que era hora de começar a leitura. Foi uma das melhores decisões tardias da minha vida.
A esta altura, o leitor impaciente deve estar se perguntando do que trata essa despretensiosa crônica. Calma, calma! Roma não se fez em um dia. E Nelson Rodrigues ensinou, para quem se deu ao trabalho de aprender, que uma boa crônica conta histórias feito um bolo de rolo de dona Maria Esther. Então vá lá que agora chega a hora de meter os dentes no doce e ir direto ao assunto: “Um defeito de cor” deve entrar na lista dos livros mais importantes da literatura brasileira de todos os tempos! Devo dizer que amo Machado e Guimarães, que me apaixonei muitas vezes por Jorge Amado, Lima Barreto, Bandeira e Drummond, que leio Nelson para me inspirar, Clarisse para chorar um pouquinho, Conceição para sentir orgulho, Graciliano para economizar nas palavras (já isso não consigo fazer). Ana Maria Gonçalves tem lugar entre os grandes. E não seria exagero estender o passo para outras literaturas, latino-americana, portuguesa, africana e russa. Ana Maria Gonçalves continua a ter lugar entre os grandes. Na estante de minha biblioteca, a lombada de seu livro acompanha as de “Grande Sertão…” e “Dom Casmurro”. Ana Maria Gonçalves tem lugar garantido e inamovível entre os grandes. E poderia estar também ao lado de “Os irmãos Karamazov” e “Cem anos de solidão”.
Exagero!, pensarão os céticos e os imbecis. Bem, se quem leu “Um defeito de cor” não foi abalado, um pouquinho de nada, não haverá santo para livrar sua alma do inferno dos idiotas. Pronto, é isso mesmo! Ana Maria (quero que ela me permita chamar assim), para ficar em um exemplo, transporta o leitor para dentro de um navio negreiro. No século XIX, tempo em que se passa a trama, eram em média 40 dias na travessia atlântica, da costa africana até o litoral moreno de Salvador; 40 dias de horrores no fundo mais fundo que a humanidade produziu nos porões dos negreiros. Não é possível sair daquelas páginas sem abalo. Ana Maria esteve lá? Ela conheceu, na própria carne, o desespero dos tumbeiros? É claro que não. Mas… Como pode descrever aqueles dias com tanto detalhe? Sentimos o cheiro que ela quis que sentíssemos, o gosto estragado na boca, a fome, a loucura, a morte. Ela esteve lá? Porque Ana Maria conseguiu nos levar, palavra por palavra, até o fundo sem fundo daquele porão.
Ana Maria esteve na senzala de uma fazenda em Itaparica? Esteve sim. Ela foi humilhada, violentada, estuprada, torturada, quase todos os dias durante muitos anos? Não, não era ela. Ainda bem, não era! Era sua outra parte, que falava por si como se por ela. Ou o contrário: era Kehinde, depois Luísa Gama, depois Luísa Mahi — a mesma e todas as outras dela mesma que se manifestaram. Salvador incendiada pela revolta popular dos pretos, os Malês, o levante que não chegou a acontecer, mas que mesmo assim se deu. Ana Maria esteve lá. Esteve quando nasceu seu filho, de nome cristão Luís Gama, mas que era filho de Ogum e da guerra que precisava ser feita. Ana Maria esteve lá. E me levou junto.
“Um defeito de cor tem muito”. É fruto de pesquisa cuidadosa, de esmero da escrita, de paixão e compromisso com o que não se pode esquecer nem calar. Esta terra de Pindorama teve escravizados, e isso precisa nos fazer lembrar de coisas muito desagradáveis. Nossa história é violenta, brutal, desigual; os africanos que chegaram aqui nos navios negreiros eram coisa que se vendia, trocava e alugava. O cuidado com suas vidas era o mesmo que se devota a uma mercadoria cara. E só. Mas os africanos trouxeram culturas. Trouxeram modos muito próprios de ver o mundo e as coisas do mundo que não se veem. De uma forma ou de outra, todos somos seus herdeiros, porque somos brasileiros, e isso continua a ser tão difícil de saber do que se trata.
Ana Maria Gonçalves é um sintoma: assim espero. Sintoma de uma literatura e de um pensamento que vai ganhando força através de mulheres pretas que contam suas histórias, suas escrevivências. Elas são muitas: Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Lia Vieira, Ana Paula Lisboa, Sônia Rosa, Lélia Gonzales, Ynaê Lopes dos Santos, Djamila Ribeiro, e tantas outras mais. Ana Maria é sintoma e é também o lugar de chegada e encontro de todas as mulheres pretas, e as não pretas, e as quase pretas, e todos nós afinal, filhos desse país sem pai e sem paz, que se inventou com a fantasia injustificável entre nós da vida mansa e ordeira. Somos os cordiais de Sérgio Buarque, os brutais filhos da sociedade escravocrata, como ensinou Joel Rufino, estupidificada pelo racismo e suas degenerescências, o preconceito, a discriminação, a segregação e o genocídio. Ana Maria deverá ser nossa nova professora.
Mas agora é carnaval! É tempo de festa e alegria, sem nunca perder a chance de nos fazer pensar sobre nós mesmos. Portela, ah, minha Portela! Vou ver você passar! Já aprendi seu samba. Já toco novamente o cavaquinho. Desejo sua vitória neste ano. Desejo a vitória dos oprimidos todos os anos. Desejo que o samba e a cultura popular nos redimam. Desejo que dancem e cantem todos na avenida. Desejo que Ana Maria Gonçalves fique feliz com teu desfile. E Luísa Mahin também. Salve o manto azul e branco da Portela!
Rogério Athayde é escritor, professor de História e palestrante de temas referentes à África, preconceito racial e intolerância religiosa. Em mais de 20 anos de carreira, estuda a cultura e a religião yorubá. Ele é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e graduado em História, todos pela UFRJ. É apresentador do programa Ibaxé, canal no YouTube sobre África, literatura africana, religiosidade e arte.