No dia do padroeiro da cidade, São Sebastião, eu, católico fervoroso e inveterado devoto do santo, confesso que não penso em voltar a morar no Rio. Vivendo a 85 km da badalada Zona Sul, de praias, parques e bares que frequentei por décadas, aprendi que, tanto quanto o tempo, a distância nos ensina.
Ao me mudar para uma clareira em meio a uma floresta em Araras, concretizei um sonho de infância; até então, clareiras só em contos, como Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos. Adormeço ao som de uma orquestra polifônica de sapos, rãs e pererecas, e desperto com uma miríade de pássaros sobrevoando e cantando ao redor. Assim como os moradores da capital aprenderam a diferenciar o som de uma AK-47 de um três oitão, eu distingo os cantos de sabiás, de bem-te-vis e canários.
Na Gávea ou no Leblon, bairros onde morei, a trilha era uma só: motoboys com seus escapamentos ensurdecedores, buzinas histéricas e, no vocal, o refrão “pega, pega ladrão!” vinte e quatro horas por dia.
Mentiria se dissesse que não sinto falta do nascer e do pôr do sol com os cães no Arpoador; das caminhadas no Jardim Botânico e no Parque da Cidade; das trilhas que ligam a Gávea ao Horto pela floresta da Tijuca; do Bracarense, do Jobi; das nights de Guimas; das rodas do Bip; do balcão do Haru (aliás, de tudo que é balcão); do luxo que é o pé na areia De Lamare; do agito do Alalaô Kiosk; da varanda boêmia do Marimbás; do acarajé da feira hippie; de, do nada, me meter num trem até o subúrbio; de todos os porteiros, garis, garçons, ambulantes, catadores de lata, flanelinhas, guardinhas, passeadores (e donos) de cães e vendedores de chiclete; e de toda essa gente que continua sorridente e seminua para além do pôr do sol, para além do carnaval.
O santo, que, em 20 de janeiro de 1567, nos livrou (livrou?) da poderosa esquadra dos invasores franceses, é incapaz de operar o milagre de curar as duas mazelas que mais afligem os cariocas: a violência e a desordem. Por razões óbvias, ele não curte a máxima “enquanto houver bambu, lá vai flecha”.
Carioca não mais da gema — da clara —, como prometi antes de deixar o Rio, apareço de vez em quando: em caso de urgência e de saudade. Parafraseando Tom Jobim: “Eu não moro no Rio, mas ainda namoro o Rio”. E namorar é melhor que morar junto.
Helinho Saboya é advogado.