Ao se saber vencedor do Prêmio Camões, em 2022, Silvino Santiago disse à coluna: “O reconhecimento fortalece, é a garantia de que não estou tão errado no meu caminho. Sempre fiz o que gostaria de fazer, mas já fiz também sacrifícios de muita coisa — trabalhei tanto, lutei tanto!…”
Como visto, a preguiça não está na lista de pecados desse mineiro-carioca, que, nesses 87 anos, se dedicou às Letras (ensaísta, poeta, contista, romancista), ao magistério e à crítica literária. É também doutor pela Sorbonne, ex-professor universitário na Europa, nos Estados Unidos e em universidades brasileiras, como a PUC-RJ. Costuma também ajudar informalmente novos escritores que o procuram.
Com todo esse patrimônio, digamos assim, fez um discurso à altura dos inúmeros convidados, no Auditório Machado de Assis, na sede da Biblioteca Nacional, entre eles, o presidente da instituição, Marcos Lucchesi, da ministra da Cultura, Margareth Menezes, e do embaixador de Portugal no Brasil, Luís Faro Ramos, nesta terça (14/11), quando recebeu o prêmio. Ao ouvi-lo, sua agente literária, Lucia Riff, comentou: “O discurso (abaixo, na íntegra) foi de uma profundidade, uma elegância, uma força, um olhar pro futuro, realmente emocionante”.
O discurso completo:
“Ser contemplado com um prêmio literário da altitude do Prêmio Camões é motivo de autoestima e de grandes alegrias. A vida profissional do escritor, dedicada ao ensino da Literatura em universidades, somada à prática da crítica literária e cultural em periódicos e ainda à variada e expressiva produção artística em livros, estava sendo distinguida. Em Lisboa, o meu trabalho intelectual — disperso no tempo e no espaço — se unifica, em consequência de inesperada decisão de uma comissão de especialistas, aos quais envio os meus sinceros agradecimentos.
O intenso foco de luz camoniano realça, como se já tivesse chegado à condição de um todo, o trabalho do cidadão brasileiro e a sua entrega à educação, ao jornalismo cultural e à arte. Momentaneamente, eu, apologista da diferença desconstrutora, me reconheço indivisível e perco as contradições naturais de experiência existencial singular nos difíceis e complexos tempos que nos coube viver.
Toda padronização de vida e obra, se explicitada por premiação vinda do alto, significa o minuto de uma avaliação jubilosa.
Mas o que realmente significou receber o Prêmio Camões no segundo semestre do ano de 2022?
A pandemia tinha instaurado o medo e a infelicidade no Planeta. Desaparecem as cenas de multidão e se multiplicam as fotos de covas e de retratos de pessoas tristes e ensimesmadas. O silêncio e o caos tomam conta das famílias e das ruas que, no Brasil, padecem o descaso administrativo do Ministério da Saúde e do próprio governo nacional. Não há clima digno para ambientar e encorajar o fluxo da autoestima e da alegria sentido pelo cidadão brasileiro contemplado.
Nosso 2022 não será fácil de ser esquecido. Em todos, da Mongólia à Patagônia, o ano deixou marcas à flor da pele e profundas.
No Brasil, o sofrimento anônimo e comunitário não foi diferente do sentimento íntimo – talvez tenha sido até mais intenso. Não há que nomear hoje todos os desastres mortais por que passaram nossos entes queridos. Os acontecimentos ainda são recentes e queimam nossa sensibilidade fragilizada. Nesta manhã, entre os presentes aqui na Biblioteca Nacional, as vidas humanas de então se assemelham a feridas abertas na memória coletiva e individual.
Ao final do ano de 2022, o resultado das eleições trouxe alento. Trouxe de volta ao povo brasileiro a possibilidade de se concretizar no dia a dia a esperança e o sonho duma nação mais igualitária e solidária. Era urgente a reconstrução meticulosa de um país da América do Sul que esteve a perigo de desaparecer no caos.
Mas persiste o fato de eu ter recebido o prestigioso Prêmio Camões no segundo semestre de 2022. Ele se confundiu ontem com a parada momentânea da História nacional e universal numa “estação do inferno” (“saison en enfer”), para lembrar o célebre poema em prosa de Arthur Rimbaud. Tenho de cor as primeiras palavras do poema. Cito-as: “Sentei a Beleza nos joelhos e a achei amarga”.
E, refletindo minimamente, mais amarga me apareceu a Beleza poética no plano da literatura nacional.
A própria atividade profissional, a que o professor, o crítico cultural e o romancista tinha dedicado toda a vida, estava sendo finalmente aberta para novas, mais abrangentes e mais esperançosas experiências artísticas que, num clamor por justiça, imputam um sentimento de culpa às gerações passadas, — à minha própria geração.
Desde o Renascimento europeu e as viagens transcontinentais, temos sido e ainda somos coniventes com uma das mais bem acolhidas e mais injustas civilizações implantadas no Sul pelo Ocidente. Uma civilização indígena do Novo Mundo tinha sido contemplada pela notável tradição ocidental e, no ambiente em que cotidianamente circulamos aqui e no estrangeiro, emergia uma dor secular. E havia também uma exigência de muitas e de muitos injustiçados, pouco ouvida. Na história nacional ouvia-se um grito amordaçado de mágoa. Séculos de sofrimento exigem hoje uma reparação urgente.
Repito-me. Aos 86 anos de idade, sentia-me momentaneamente unificado, como se todo o ontem estivesse a se concretizar num agora dionisíaco, e, no entanto, vivia como se a obra tripartida que construíra a tão duras penas, e que justificara a opção pelo meu nome e obra em Lisboa, fosse motivo menor de vaidade pessoal e bem-estar nacional; fosse, na verdade, motivo maior para eu me julgar um cara-pálida, a me somar a um arrependimento coletivo desejado, esperado, mas nunca concretizado.
Sim, a literatura brasileira que eu expressei e continuo a expressar em língua portuguesa está a ponto de passar por abalos sísmicos que serão duradouros. Foram desejados e esperados. Agora, são exigidos e são concretizados.
Bem-vindos sejam os novos protagonistas! Elas e eles ganham o palco pela força também secular da resistência e se representam humana e artisticamente por emoções e sentimentos originários e autênticos.
Sou premiado, mas estou parado nos versos recordados de Rimbaud. Ainda sento a Beleza nos joelhos e a acho amarga.
Piso novamente o chão natal e lanço os olhos para a imensidão do Brasil, enriquecido ao norte pelas águas caudalosas do Amazonas e banhado a leste pelo oceano Atlântico. Não me pergunto, afirmo que é chegado o momento de liberar a literatura brasileira às águas amazônicas e às atlânticas africanas e a todas as correntes diaspóricas.
As naves multiétnicas não ancoraram em Porto Seguro. Mas agora trafegam em liberdade pelas águas democráticas e cidadãs da década que se abriu em janeiro de 2022. Suas tripulações amazônicas, atlânticas e mediterrâneas, só recebiam permissão para trafegar como cidadãs plenas se sob o comando dos dedicados etnógrafos (nacionais e estrangeiros), ou se sob a bandeira menor e suplementar de acervo folclórico ou de literatura oral brasileira.
Lanço os olhos para a infinita imensidade desse agora que vivo e vivemos e dedico o Prêmio Camões a Mário de Andrade, meu mestre.
Em 1942, proibido pelo Estado Novo de falar no auditório do Itamaraty, Mário lê, na Casa do Estudante do Brasil, o seu sofrido testamento sobre o legado do Modernismo brasileiro. Ao final, a reflexão ensaística do mestre se torna pessoal e se exprime por palavras que roubo no momento em que agradeço a presença ilustre de todas e de todos neste auditório.
Repito as palavras de Mário de Andrade:
E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz”.