Quando minha mãe começou a ir além dos pequenos esquecimentos e passou a apresentar sintomas mais severos do Alzheimer, uma das coisas que me chamaram a atenção foi que ela não deixara de ser quem era, mas se tornava ainda mais ela mesma.
Para o bem e para o mal, minha mãe tinha sido, a vida inteira, deliciosamente implicante. Com apurado senso estético, nada lhe escapava – fosse roupa, comida, uma frase, cena de novela, corte de cabelo, arrumação da cama. Em casa, as coisas eram do seu jeito – e seu jeito era o jeito certo.
Meu pai não conseguia combinar camisa e gravata – minha mãe é que o impedia de sair de camisa azul e gravata verde, com terno marrom. Ele não distinguia cores quentes e frias, berrantes ou tons pasteis. Uma vez, ao nos mudar de cidade, tivemos de alugar temporariamente uma segunda casa, porque a oficial tinha sido pintada ao gosto dele. Isto significava um quarto rosa choque, outro quarto azul piscina, a sala verde limão, o corredor laranja. Os móveis não chegaram a descer do caminhão – e só entraram na casa, junto conosco, quando o lugar tinha tomado ares de casa do juiz, não de mostruário da Suvinil ou botequim de beira de estrada.
Se a vida toda minha mãe torcera o nariz para o mau gosto, com a demência isso se tornou uma obsessão. Passeávamos de carro e cada casa verde musgo ou cor de abóbora que surgia no caminho lhe parecia um acinte.
Outra implicância antiga eram os pilotis. Ainda nos anos 60, ela não se conformava com edifícios encarapitados em pernas finas, como móveis pés de palito. Jamais moraria “naquilo”. A ojeriza voltou, com ânimo redobrado, meio século depois: preferia nem olhar para o que lhe parecia algo prestes a desabar.
Também tenho minhas implicâncias (quem não as tem?) e começo a pensar se, no processo natural de degradação do cérebro, elas não assumiriam indesejado protagonismo.
Detesto barulho em geral e gente que fale alto, em particular. Mas onde moro os porteiros gritam, as arrumadeiras gritam, os moradores gritam e os instrutores de tênis e hidroginástica berram. Uma opção é me mudar para um lugar civilizado (o meio do mato, por exemplo) ou começar, também eu, a falar 50 decibéis acima (se não pode contra eles, una-se a eles). O que não quero é me tornar um velho que ache todo mundo mal-educado (já acho) ou que viva pedindo para abaixarem o som ou falarem mais baixo (já peço).
Outras implicâncias são franja e tatuagem. Não entendo o que possa levar um ser humano a esconder a moldura natural dos olhos e das sobrancelhas. Passado dos 60, até confio em pessoas com mais de 30 anos, mais de 30 vestidos etc – mas desconfio profundamente das intenções de quem não assuma a própria testa. Ou rabisque o corpo.
Quem se tatua nunca está nu, e a nudez é uma dádiva. É estar livre de todas as referências externas – bastam-nos as rugas e as cicatrizes.
Uma última implicância é “Evidências”. Não é que não goste do hino composto pelo José Augusto e pelo Paulo Sérgio Valle. É que fica difícil não pegar ranço de uma canção que se é obrigado a ouvir todo fim de semana, anos a fio. Quer o céu desabe, quer o sol esteja em modo lança-chamas, em alguma churrasqueira, piscina ou play da vizinhança haverá alguém tocando “Evidências” em volume máximo.
Tenho trabalhado com afinco para neutralizar essas implicâncias e não permitir que a franja, o barulho, a tatuagem e “Evidências” venham a ser para mim o que foram os pilotis e o mau gosto para a minha mãe.
A franja há de sair de moda (principalmente essa cortada a canivete). O detattoo – o detox da tatuagem – não vai demorar a ser tendência (principalmente quando não houver mais pele a rabiscar). Para o barulho, é só continuar com earbuds 24 horas por dia (minha otite que lute). E quanto a “Evidências”… bem, o Milton Nascimento gravou. E ficou lindo. Então eu não me afasto nem me defendo. Já consigo aceitar que não dá mais pra separar as nossas vidas.
Quando a indesejada das gentes chegar (falo da velhice, da demência), espero que encontre a mente limpa, os neurônios desintoxicados, cada implicância – com a etiqueta “Arquivo morto – Não mexa” – em seu lugar.