Nunca estive pessoalmente com Gal Costa — eu a conheci aos poucos. Como muitos, eu também a colocava num segundo plano, entre os grandes da MPB. Quando me perguntavam quem estava no meu pódio, Milton Nascimento e Chico Buarque, com certeza. O terceiro lugar variava: às vezes, Caetano, às vezes Gil. Gal me fez quebrar o pódio, além de muitas outras certezas que eu tinha. Para que ela pudesse entrar, comecei a observar a MPB por outras lentes. Não eram só as letras das músicas ou os discursos militantes: Gal me trouxe a preocupação com as sensações e espaços gerados pela voz. Até minha forma de ver a política mudou. Hoje entendo que a arte é capaz de imaginar outras sociedades, outros Brasis e, nesse sentido, vamos testando modos diferentes de nos organizarmos enquanto nação. Também me relaciono com o corpo de um jeito diferente – Gal me ensinou que nosso corpo é inteligente, que ele produz discursos, encenações e que a sabedoria não está só nessa construção que é a “mente”. É um impacto enorme na minha vida e devo tudo isso a Gal.
Ela se materializa para nós como potência de vida; sempre foi assim. Enquanto os debates artísticos e culturais dos anos 60 e 70 estavam sendo travados nas páginas dos jornais, ou, até mesmo, nas letras das canções, Gal seguia por outro caminho. Ela contestava a ditadura militar e os valores capitalistas a partir de seu corpo – um corpo que chamei de corpo-mente, pois, ao contrário do que nos é ensinado, também pensamos corporalmente.
Gal Costa foi uma das maiores na arte de colher as informações e angústias da sociedade, elaborá-las dentro de si e criar uma performance cênica. Desse modo, envolvia o público, os musicistas, os sons etc. numa atmosfera única e partilhada. Quem vivia a experiência de seu show saía modificado e atento aos sentidos que foram comunicados de uma outra maneira. Imagine a eficácia dessa estratégia em plena ditadura! Gal não precisava cantar letras de protesto, já que seu corpo criava um protesto absorvido pelo campo das emoções. Seu legado no palco influenciou a todos os artistas que vieram depois.
Em matéria de seu instrumento, a voz (também corpórea), Gal Costa foi imbatível em conduzir o ouvinte para além da dimensão do conhecimento racionalizado. Acredito que a forma como ela cantava um verso triste promovia mais tristeza do que a poesia sozinha seria capaz de fazer. Gal proporcionava um mergulho. Enquanto ela mergulhava em suas entranhas para mobilizar o sentimento, nós íamos junto. Acabávamos por conhecer nosso íntimo também. Coloque um disco de Gal e sinta isso.
A importância desse tipo de inteligência para o Brasil de hoje é enorme. A luta por uma sociedade igualitária se beneficiaria, entendendo que não basta o discurso falado. O discurso do corpo é fundamental porque é através dele que somos afetados. E são os afetos que nos movem em direção a uma causa política. Gal Costa ensinou ao Brasil como lutar dançando.
Veja o espetáculo “Fa-tal”, de 1971, que é, na minha opinião, sua obra-prima. Ali, a euforia e a sensualidade não estavam em polos opostos à seriedade. A encenação de “Fa-tal” reunia discussões extremamente relevantes sobre estética e política. Ao mesmo tempo, Gal brincava, pulava, festejava e se contorcia. Só que tal encenação não era gratuita, pois seu corpo-mente despertava na plateia sensações ambíguas de felicidade e desconforto. Sua beleza atraía, mas não se tratava do padrão da mulher da época; sua voz encantava, mas era entremeada por gritos e ruídos pouco usuais. Em síntese, Gal contestava a família tradicional com os papéis de gênero predeterminados, a comodidade diante do regime militar e até a ideia de que a arte precisa ser agradável.
Gal Costa foi um vulcão de transformações na MPB. Sua versão do tropicalismo mostra um novo lado, pouco comentado. É a cultura marginal agindo sobre o movimento que ficou conhecido nos festivais e no programa do Chacrinha. Assim, o tropicalismo, segundo Gal Costa, é mais agressivo e angustiante. Ela abraçou a escuridão e articulou a tragédia com a alegria, numa catarse.
Diante do que foi dito até aqui, como continuar num país sem Gal Costa? Talvez aceitando que não estamos sem ela. Gal se materializa em cada mulher cantando, em cada instrumento tocado e em cada palco espalhado por este Brasil. Sua potência de vida é uma chama resguardada por nós e temos a missão de manter o seu legado. Não vamos perder as memórias, não vamos desligar a música e nem mudar de vídeo. E quando for necessário, levaremos sua obra adiante para que as novas gerações se sintam brasileiras porque Gal Costa foi uma artista brasileira.
A carioca Taissa Maia é pesquisadora. No mês em que a morte de Gal Costa completa um ano, ela lança seu primeiro livro, “A todo vapor — O tropicalismo segundo Gal Costa” (Garota FM Books), do dia 27 de novembro, às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo. O livro está em pré-venda desde essa quinta (09/11), dia da morte da cantora, nos sites da Amazon, da Livraria da Travessa e da Garota FM Books. São 128 páginas sobre a vida e carreira de Gal a partir de uma reconstrução de discursos sobre a sua atuação no tropicalismo, um dos desdobramentos da dissertação de mestrado “Linda, feia e (des)aparecida: A mulher e os discursos sobre o tropicalismo musical”, defendida por Taissa na UFRJ, em 2021.