As artes performáticas, teatro, dança, música, permitem uma experiência única — ver-se ao vivo, em cores, uma realidade que se desenvolve por um determinado por um tempo, com a presença de pessoas. Assim, homem jovem pode fazer papel de idoso, mulheres podem representar papéis masculinos, ou mesmo aparecerem sem caracterização alguma, fazendo-nos ver o personagem que interpretam. Essa magia está presente, de forma intensa, em “Meu corpo está aqui”.
A peça trata, com absoluta delicadeza e talento, de um tema ainda difícil de ser visto no cotidiano e, ainda raro, nos palcos. Baseia-se nas experiências pessoais de Bruno Ramos, Haonê Thinar, Juliana Caldas e Pedro Fernandes, atrizes e atores PCDs (pessoas com deficiência): eles próprios estão em cena falando abertamente sobre seus relacionamentos, seus corpos, seus desejos.
O trabalho de texto e a direção de Júlia Spadaccini, também pessoa com deficiência, e Clara Kutner são de uma exatidão cirúrgica. Puxam, em apenas um gesto, o esparadrapo que cobre aquilo que a sociedade recusa ver. Dessa forma, os quatro atores transitam com total competência pelo palco, sem pedir nenhuma licença, para contar os episódios e vivências.
No elenco, Bruno Ramos é surdo não oralizado; Haonê Thinar é pessoa amputada; Juliana Caldas tem nanismo; e Pedro Fernandes tem paralisia cerebral com cognitivo preservado e é usuário de cadeira de rodas. Sem vitimização, muito, pelo contrário, contam as histórias de forma contundente, direto ao ponto. E lá estar o humor inteligente, sobretudo quando falam dos outros, pois o mote maior é a sua capacidade de desejar e exercer o desejo sem limitações.
É no ato da performance que exercem a cidadania a que têm direito, com excelentes atuações que abrangem aquilo que é peculiar ao humano: sou amado, sou aceito, sou rejeitado, o que posso me permitir. O que vemos no palco é aquilo que poderia ser considerado pesadelo virar sonho, devaneio, imaginação, afeto e prazer — como todos nós queremos e merecemos.