Meus pais eram judeus, nascidos em Berlim, e, pela intolerância da nova ideologia imposta pelo governo de Adolf Hitler, em 1933, tiveram que fugir da Alemanha. Sobreviveram e chegaram ao Brasil, onde nasci, na cidade do Rio . Entre outras formações acadêmicas, fiz graduação em História, e me especializei no tema Holocausto. Queria entender a que nível de desumanidade os homens são capazes de chegar por conta da intolerância, do preconceito e do racismo.
Estudar o Holocausto através da arte foi uma forma de entender como se enfrenta a intolerância, com fome, incertezas e doenças, e também como sobreviver com dignidade, dividindo seus sonhos, esperanças, desesperanças, humilhações através dos desenhos, poemas, musicas, teatro e outras atividades relativas à arte, através do que chamo de resistência psicológica.
Infelizmente, a História nos mostra que a intolerância ainda permeia o mundo de hoje, e por isso temos um compromisso com a memória, para que fatos sejam conhecidos e nunca mais voltem a acontecer. Daí a importância dos testemunhos que se originaram no genocídio cometido pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e nos sofrimentos do povo judeu através da História.
O livro é um testemunho — através das 40 músicas apresentadas, produzidas pelos judeus enquanto prisioneiros em guetos, campos de concentração, campos de extermínio ou nas florestas, produzidas em iídiche ou alemão, e que foram, pela primeira vez, traduzidas e transliteradas para o português, forma-se um quadro em preto e branco do que foi a vida e o dia-a-dia dessa população encarcerada. No final do livro, 32 dessas músicas podem ser ouvidas através de QRCodes, acompanhando-se a letra e a melodia. Os músicos que sobreviveram diziam que através da música nunca estavam sozinhos, “pois sempre havia eu e minha voz, eu e um som”.
Mas como produzir arte em tempos tão intolerantes? É a força do sentimento, da emoção, da necessidade de se contatar com o passado, para manter a memória de tempos bons que se foram e que esperavam retornar. Dessa forma, podemos fazer um paralelo com os tempos atuais, em que convivemos com tanta intolerância, e ainda não conseguimos pôr fim ao ódio contra qualquer um que seja “diferente” — seja negro ou branco, judeu, árabe, cristão ou muçulmano —, qualquer pessoa cuja orientação difira politicamente, filosoficamente, sexualmente do que é considerado “politicamente correto”, onde podemos incluir o sofrimento dos etíopes, dos cambojanos, dos barcos, dos palestinos, dos índios mesquitas, dos “desaparecidos” argentinos, dos refugiados — em uma lista que parece interminável.
A literatura não tem como único objetivo que o mundo se lembre e aprenda sobre o Holocausto, mas também combater a indiferença, a intolerância e a atitude daqueles que acham aquilo não lhe diz respeito. Ao nos tornarmos solidários com os prisioneiros da intolerância, estamos condenando os perpetradores do ódio e seus carcereiros.
E que possamos produzir músicas para mostrar que a intolerância pode ser combatida através de belos sons, pois “a música expressa o que não se pode dizer e o que é impossível silenciar.” (Victor Hugo)
Silvia Rosa Nossek Lerner é autora do livro “A música e os músicos em Tempos de Intolerância: o Holocausto” (Editora Rio Books), a ser lançado na Travessa do Shopping Leblon, no dia 23 de outubro, às 19h. Silvia é filha de pais sobreviventes do Holocausto, professora especializada em estudos sobre o tema, com graduação em Direito, História e Pedagogia, pós-graduada em História do Século XX e mestrado em Psicanálise, Sociedade e Cultura. Tem vários artigos publicados e é autora dos livros “Liberdade de escolher como morrer: Resistência armada de judeus no Holocausto” (Imprimatur, 2015), “A música como memória de um drama: o Holocausto (Garamond, 2017), e “Arte em Tempos de Intolerância: Theresienstadt” (Rio Books, 2021).