Talvez Tetê Espíndola e Arnaldo Antunes enfrentem reações pouco favoráveis de parte da plateia se incluírem em algum show a canção de Lupicínio Rodrigues que diz:
“Agora você vai ouvir aquilo que merece
As coisas ficam muito boas quando a gente esquece
Mas acontece que eu não esqueci a sua covardia, a sua ingratidão
A judiaria que você um dia fez pro coitadinho do meu coração”
O Houaiss define “judiaria” como “ato de zombar de alguém”, “ato de maltratar alguém, física ou moralmente”, “chacota, judiação”.
Virou palavrão ainda pior que “denegrir” porque, pelo menos, tem efetivamente origem num tipo de discriminação: “judiar” é tratar alguém como os judeus foram tratados. Não estimula ou justifica os maus tratos aos judeus — ao contrário, aponta essa agressão. Mas, aparentemente, a lembrança de um passado não tão distante precisa ser apagada da linguagem.
Dificilmente haverá regravações de “Na batucada da vida”, de Ary Barroso — que já teve uma versão definitiva na voz de Carmem Miranda e outra, mais definitiva ainda, na de Elis Regina:
“Cresci olhando a vida sem malícia
Quando um cabo de polícia despertou meu coração
E como eu fui pra ele muito boa
Me soltou na rua à toa, desprezada como um cão”
Que naturalização é essa da crueldade animal?
No caso de Lupicínio, é fácil se adequar às novas mentalidades. Basta trocar “judiaria” por “mesquinharia”, e encaixa direitinho na letra: “A mesquinharia que você um dia fez pro coitadinho do meu coração”. Só precisa torcer para ninguém investigar a origem da palavra “mesquinho” (vem do árabe “miskin”, que significa “pobre, mendigo, infeliz”. Ou seja, aporofobia pura — mas não espalhe, por favor, ou aí é que esta música não sai do limbo mesmo).
Já na canção de Ary Barroso, pode-se trocar o trecho especista por “Me soltou na rua à toa, desprezada como nenhum ser senciente deveria ser, oh não” (esse “oh não” é para rimar com “coração”).
Gilberto Gil teve, recentemente, dúvidas existenciais sobre cantar “Ovelha negra” numa homenagem à amiga Rita Lee. Sim, a expressão está na lista negr… ops, no Index Prohibitorum das locuções que nunca foram racistas, mas são consideradas racistas assim mesmo e pronto.
Entre mudar para “Foi quando o meu pai me disse: Filha / Você é a ovelha cuja lã é pigmentada com uma cor que absorve todos os raios luminosos visíveis incidentes da família” e ser politicamente correto, Gil foi sábio e manteve o original.
Mas terá que cortar um dobrado com “Esperando na janela”, porque “Ainda me lembro do seu caminhar” ofende os que têm problema de memória e de locomoção; “Seu jeito de olhar eu me lembro bem” discrimina os portadores de deficiência visual e, de novo, os que sofrem com lapsos cerebrais; “Fico querendo sentir o seu cheiro, é” é pouco empático com os que padecem de anosmia, a perda de olfato; e só escapa o último verso, “Daquele jeito que ela tem” (mesmo assim com a ressalva de que ser é mais importante do que ter, e este verso pode ser uma apologia ao acúmulo de atributos físicos ou de adesão aos padrões de desempenho impostos pela sociedade).
Mesmos pontos a serem enfrentados por Roberto Carlos em “Olha / Você tem todas as coisas / Que um dia eu sonhei pra mim” — gatilho para quem não enxerga, quem é despossuído de bens e quem é afligido pela insônia.
É bom a gente ir se preparando para ouvir versões revisadas de Milton ou Caetano cantando que “Um indígena descerá de uma estrela colorida, brilhante”. Ou a Legião Urbana, com “Quem me dera ao menos uma vez / Como a mais bela tribo / Dos mais belos povos originários”.
Se fizeram com Monteiro Lobato, por que não com todo mundo?