Nos últimos dias tive muitos momentos de perplexidade, tristeza, e indignação, enquanto escutava posições tomadas por empresas jornalísticas, partidos políticos, pessoas conhecidas, e algumas que até considerava amigas, em relação ao conflito que se iniciou entre o país democrático Israel e o grupo terrorista Hamas.
A perplexidade se origina, em primeiro lugar, ao constatar um fato duramente trágico, que o conceito de terrorismo aqui no Brasil, ou pelo menos para um significativo número de pessoas, é um conceito conveniente, manipulado e adequável às suas crenças políticas, religiosas, e interesses pessoais. Não é o conceito universal partilhado pelos países democráticos que prezam pela liberdade e pela educação de seu povo. Então é assustador constatar a violência e a ignorância grotesca de tantas pessoas que se supõe porta-vozes da cultura ou da política.
Durante toda minha vida, tive oportunidade de fazer muitas leituras e discutir em diversos contextos o assunto, e nunca deixei de concluir que o conhecimento não é suficiente para deter a violência. Ela é intolerável, certamente, mas sua teorização, sua justificativa como ação que pretende resultar em qualquer coisa, é ainda mais intolerável.
A violência tem muitas facetas, e uma delas que reconheço com muito pesar é a existência de antissemitismo aqui no Brasil. Tenho consciência de que essa miséria humana se esconde sob as mais diversas formas e sempre tem origem em religiosidades diversas, sejam elas políticas, filosóficas, ou nas próprias convicções religiosas quando se tornam cegas e dogmáticas. Mas seja qual for a capa que vestem, o fundo é sempre a falta da ética universal.
Tenho também consciência clara de que existem margens não superáveis entre as religiões. Todavia, como são conflitos de fé, podemos sempre escolher uma ética da transcendência onde prevalece a compaixão, a caridade, e a prudência que respeita o outro abrindo mão da vaidade mesquinha das pequenas diferenças. Essa é uma das bases de uma ética universal
Existe o que podemos chamar um ato de fé, uma força criativa, que nos leva a adotar essa ética fazendo com que o insuperável se torne em grande parte superável pelo amor à vida. Posso acrescentar nesse ponto, o filósofo Spinoza dando a direção de que o homem livre não pensa na morte, mas se dedica à vida, à liberdade, e ao direito de todos seres humanos existirem, serem felizes, e se respeitarem em suas diferenças. Para muitos, totalmente cegos pelo dogmatismo, essas palavras são palavrões.
O judaísmo e o cristianismo, entendo que antes de qualquer religiosidade tem uma ética muito clara sustentada pelo amor à vida. Infelizmente ela não existe em muitas doutrinas filosóficas, políticas e religiosas. O lema que se encontra na bandeira do Hamas de que “nós amamos mais a morte, do que nosso inimigo ama a vida”, já diz a que veio: apologia à barbárie. Uma longa digressão poderia ser feita na enorme incoerência de características psicopáticas, senão psicótica, contida nesse lema. Mas é certo que a barbárie tem ódio a tudo que é ético.
Assim percebo com tristeza e indignação que essa apologia à barbárie do Hamas é negada por pessoas tomadas por extrema ignorância, má fé, ou por perversa hipocrisia de certas doutrinas políticas, ou os três elementos juntos. Esses elementos impedem de ver a ausência da ética universal. Tal ausência leva à negação de que o terrorismo é a mais pura forma do anti-humano e da ética universal.
Em poucas palavras, a ética universal tem um fundo de universais semânticos, como demonstrou meu grande mestre Umberto Eco, que são direitos do corpo, inegáveis e elementares, cujo respeito a eles separa a civilização da barbárie. Eles indicam que todo ser humano tem noção do que significa perceber, recordar, sentir desejo, medo, tristeza, alívio, prazer ou dor, e emitir sons que exprimam esses sentimentos. Portanto, possuímos concepções universais acerca do constrangimento se alguém nos impede de falar, de ver, ouvir, dormir, expelir, ir onde quisermos; sofremos se alguém nos amarra ou nos mantém segregados, nos bate, fere, ou mata, sequestra e nos sujeita a torturas físicas ou psíquicas que diminuam ou anulem nossa capacidade para pensar.
Certamente, que muitas dessas coisas ocorrem todos os dias por razões diversas, esgarçando a camada de civilização e atestando a violência social, mas, o terrorismo tem um outro tipo de violência calcada em ataques sádicos que pretendem simplesmente causar dor ou eliminar a vida. Trata-se de crueldade planejada euforicamente e triunfalisticamente, como faz o Hamas e seus apoiadores, para atender a um desejo simples e puro de eliminar quem é diferente. Aí, assustadoramente, entra o álibi religioso, ou político, ou filosófico, para distorcer com argumentos de lógica psicótica e justificar o injustificável.
O terrorismo nada mais é do que um braço armado desse cinismo e dessa hipocrisia sanguinária milenar, desse câncer que atinge a civilização há milênios. Não há nada no terrorismo de elementos da condição fundadora da civilização, e consequentemente, não há nada de ético e criativo naqueles que de algum modo o justifica politicamente, religiosamente ou filosoficamente. Existe somente ódio, crime e impulsos assassinos. Nem uma gota de capacidade para amar, nem traço de intenção para respeitar e admirar qualquer coisa que não seja a morte.
Arnaldo Chuster é médico psiquiatra e psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio e do Newport Psychoanalytical Institute, Irvine, Califórnia. Autor e coautor de 22 livros de psicanálise.