Era uma quinta-feira normal: às 6h30, eu, já na rua, a caminho da ginástica. Não tenho o costume de levar o telefone celular para a aula, então minha vida começa depois das 8h. Cheguei em casa; o telefone, aceso na bancada da cozinha, era uma alerta: várias chamadas perdidas e, no topo da lista, a mensagem da minha sobrinha “Me liga urgente” ! A gente não quer ligar, a gente não quer saber, mas a notícia ruim está lá à nossa espera: “Tia Marlise, meu pai morreu num assalto no Rio de Janeiro”. Não era um assalto, era muito pior, e meu irmão está morto.
Irmão é uma relação diferente de todas. Somos frutos de um mesmo projeto de amor, compartilhamos as mesmas lembranças, histórias em comum, temos um vocabulário próprio, secreto, que ninguém entende; só a gente tem essa chave, a gente se conversa com o olhar. Meu irmão era meu cúmplice, meu espelho, meu complemento. Era nele que eu me reconhecia — era a minha infância preservada, meu passado transportado para o presente, e, agora, estilhaçado para sempre.
Ele era incrível! Justo como todo libriano e teimoso como todos os Corsato (minha família), humano e acessível como todos os médicos devem ser. Nunca teve um desafeto, nunca falou mal de ninguém — tinha a grandeza da tolerância. Ele tinha tantos interesses e os conhecia com tanta profundidade que eu o chamava “homem renascentista”: amava música clássica, amava rock (ia a todos os shows que podia, conhecia todas as bandas), adorava esportes (foi remador na juventude), era um corinthiano fanático (daqueles que vão a todos os jogos), torcedor dos Celtics e dos Dodgers (sim, ele acompanhava o basquete e o basebol norte-americano) e as ligas europeias de futebol; conhecia e apreciava a vinicultura Argentina e cozinhava muito bem (seu espaguete à Carbonara é lendário na família). Estar perto do Marcos era sempre aprender alguma coisa — ele não era somente o professor maravilhoso para seus residentes, mas também para todos que conviviam com ele, pois, além de ele nunca ter deixado de aprender algo novo, sempre esteve disponível para dividir o que sabia.
Eu não tenho medo da morte — perdi o medo para sempre desde que, há 15 anos, meu filho foi morto em um assalto na estrada, quando ia surfar com a namorada. Percebi, desde então, que ela é um limiar, uma transição, um “até logo”. Ainda que, em algum momento, você entenda que viver é uma sequência de perdas, não se pode viver com medo: é injusto e improdutivo. Entretanto, vivemos em um país onde a violência está cada vez mais presente no nosso cotidiano, amedrontando a todos. Cabe a nós exigir ruidosamente um estado vigilante e diligente, que, efetivamente, pratique políticas que minimizem a desigualdade e, mais que tudo, elimine de uma vez os poderes paralelos que insistem em aterrorizar e destruir famílias em nome de uma segurança de araque, amadora e assassina.
Não há o que fazer. Processar o estado é o que deveria ser feito? Acho que é perda de tempo, e não vai trazê-lo de volta — às vezes, é uma atitude simplista. A energia que demanda fazer alguma coisa nesse sentido, acho que é uma energia de cura pra você mesmo. Olhando por esse lado, não vamos fazer nada.
Eu adoro o Rio de Janeiro tanto quando adoro São Paulo. Considero-o a cidade mais bonita do mundo; por conta disso, desejo que continuemos a jogar conversa fora, tomando uma cerveja num quiosque à beira-mar, sem que esse desgoverno continue autorizando que o crime dê cabo de nossas vidas.
Marlise de Andrade Corsato é paulistana, museóloga e irmã de Marcos de Andrade Corsato, um dos médicos mortos por engano na Barra da Tijuca, dia 05/10.