Como professora, neurologista e clínica da dor, sempre me incomodei muito com a dor dos meus pacientes. Já vi um pouco de tudo, e o que posso dizer é: só quem sente, sabe. Dor é uma experiência sensitiva e emocional desagradável, subjetiva e única. Essa, inclusive, é a definição oficial mais recente da IASP (International Association for the study of pain) de 2020. E, quando a dor cronifica, o quadro pode ser ainda pior. Muitos outros sintomas e comorbidades se somam; a vida vai perdendo cor, sobrevindo: insônia, depressão, ansiedade, distúrbios alimentares, fadiga. Nesse contexto, muitos pacientes se perdem, perdem referência; alguns médicos se perdem também.
Estamos falando de nada mais nada menos que 30% da população mundial com dor crônica. É muita gente — uma verdadeira epidemia de dor. E é aí que mora o perigo. Muitos pacientes, quando bem manejados e preparados para o enfrentamento da dor, conseguem benefícios e alívio dos seus sintomas, se reabilitam, muitos se curam, mas existe uma jornada para chegar até lá: diagnóstico correto, equipe multidisciplinar, terapias medicamentosas e não medicamentosas… Isso tem um custo pessoal e coletivo, financeiro, emocional, de tempo e energia. E muitos não têm pra dar, incluindo aqui os sistemas de Saúde (público e privado).
A verdade é que existe um despreparo enorme para lidar com pacientes que sofrem com dor crônica. E aí, meus amigos, é um prato cheio para mau uso e abuso de substâncias, incluindo os opioides; até porque existem muito dinheiro e poder por trás disso. E, aqui, excluo completamente os casos de dor oncológica, pacientes em cuidados paliativos e manejo de dor aguda (pós-operatória, dentre outras), casos em que os opioides ajudam e beneficiam muito os pacientes em sofrimento.
O que não podemos, nunca, é deixar de ter formação médica de qualidade, educação continuada no tema, indicadores de qualidade que nos apontem os riscos (dependência e overdose), protocolos clínicos bem direcionados, gestão de dados e vigilância epidemiológica. Os esforços têm e devem ser conjuntos: governos (Executivo, Legislativo e, por que não, o Judiciário?), conselhos médicos, centros de pesquisa, universidades e a sociedade como um todo discutindo sobre os riscos e benefícios do uso dos opioides. O objetivo deve ser facilitar o acesso a quem precisa, para alívio dos sintomas e respeito à dignidade, e controlar e vigiar continuamente para que o uso indiscriminado e inadequado, incluindo aqui, claro, o recreativo, não aconteça. É isso que vai nos proteger da chegada de uma possível crise de opioides ao Brasil.
Em seis anos, de 2009 a 2015, a venda prescrita de opioides no Brasil cresceu 465%, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicados na American Journal of Public Health (AJPH), em abril de 2018. Isso está muito longe do que se vive hoje nos Estados Unidos, Canadá e Austrália, o que, ainda assim, nos chama a atenção.
Podemos e devemos nos valer das experiências prévias desses países como aprendizado e alerta para tomarmos medidas preventivas cabíveis e proporcionais por aqui. Enfim, não existe receita fácil para problemas complexos; no entanto, enquanto não jogarmos luz sobre essas questões, não chegaremos nem perto de resolvê-las. Isso vale pra quase tudo na vida, concorda?
Camila Pupe é médica neurologista, especializada em clínica para dor, professora de Neurologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), doutora em Neurologia e Neurociências pela UFF. Atende nos seus consultórios, em Copacabana e Barra. É uma das coordenadoras do RIOpioides, 1º simpósio sobre o uso racional dos opioides, que se realizará no Hotel Prodigy do Santos Dumont, a partir desta sexta (15/09), ao lado do geriatra Filipe Gusman, especialista em cuidados paliativos. Camila é também membro-titular da Academia Brasileira de Neurologia, tendo coordenado o departamento científico de dor, e também da Peripheral Nerve Society, onde atualmente integra o comitê de diversidade. Mais informações no site RIOpioides.