Sou filho de diplomata e, como tal, pouco conhecia do Brasil até meus 17 anos. Até então, vínhamos ao País, meus irmãos e eu, apenas nas férias de julho ou dezembro, e nem todos os anos. Me lembro das praias ensolaradas, das ruas ruidosas e do que me parecia uma desorganizada e pegajosa alegria tristonha, uma vez que morávamos em países para lá de frios e arrumados, como Suíça, Estados Unidos, Áustria, Holanda. Nessas férias, ficávamos muitas vezes em casa de nossos avós, mas principalmente na de nossa avó materna. Eram tempos de ditadura, década de 70, e sentíamos isto no ar, no silêncio, na tristeza e no isolamento em que se vivia no Brasil, mesmo com a alegria das praias. Para mim, só mesmo a música e o teatro pareciam ter vida.
No meio deste país meio caótico e reprimido, havia um local muito especial onde tudo parecia paz, pensamento, cordialidade e disciplina temperada com afeto. Era a casa de nosso avô Afonso Arinos, um belo casarão branco estilo Belle Époque, plantado na Rua Dona Mariana, em Botafogo, cercado de jardins cuidadosamente aparados. Ali, tudo era doçura, simpatia, conversa inteligente e contato com grandes figuras que sempre visitavam meu avô. Ali vi Pedro Nava, com seu riso solto, Juscelino, com seus cabelos pra lá de negros, Fernando Henrique com sua simpatia e viva inteligência, enfim, havia ali uma troca muito grande entre grandes, num momento tão sombrio e calado do nosso Brasil.
Eu costumava ficar distante disso, não tinha nenhuma intimidade com meu avô, que só via nessas férias. Até que, aos 18 anos, tive uma dessas crises existenciais que nos atacam ao longo da vida, e resolvi me aconselhar com ele. Me lembro da atenção com que me ouviu e da sabedoria dos seus conselhos. Me marcou o interesse com que queria abordar o que lhe falava, e de como buscava me entender. Meu deu bons conselhos, que guardo até hoje. E era sempre generoso, até me emprestava seu carro, quando eu não tinha um, para passear com minha namorada.
Outra lembrança muito boa me veio quando voltei de uma experiência profissional nos Estados Unidos, agora já com 27 anos, e ele, para fazer 80. Estávamos num jardim do meu tio, quando meu avô me perguntou sobre questões técnicas de Direito. Depois de ouvir atentamente minhas respostas, ele puxou para si uma flor de trepadeira que estava ao seu lado, e aproximando-a de mim, disse: “Quando você tiver minha idade, vai entender que isto aqui é o que importa.”
Alguns anos mais tarde, eu, já com 33, tive a oportunidade de participar da campanha dele a Senador, que venceu sem sequer sair de casa, com mais de um milhão de votos. Sofremos juntos o sufoco da apuração, num resultado apertado, em que rivais roubavam seus votos em leilões das cédulas em branco. Comemoramos com muitas risadas a vitória, quando o apelidei de “Meu Garoto de Ipanema”, em razão de ter sido o mais votado naquele bairro.
Depois de eleito, vovô me convidou para ser seu assessor no Congresso, quando foi presidir a Comissão de Redação do anteprojeto da Constituição de 1988. Esse ato de puro nepotismo me deu bastante trabalho e me aproximou dele. Como advogado, pude opinar bastante. Ele ria das minhas opiniões, me achando às vezes conservador na minha visão da economia, mas sempre levando todos os pontos de vista em consideração.
Egresso da UDN, membro do PFL, acabou sendo um dos fundadores do PSDB, que se formava então como partido de centro-esquerda, em busca do Parlamentarismo, uma ideia que sempre lhe foi muito cara, e que já havia ajudado a construir na crise de posse de João Goulart. Sentia nele, filho, como todos nós, de uma colonização escravocrata e perversa, um grande desejo de fazer justiça aos desamparados.
Criador da Lei Afonso Arinos contra o racismo em 51, sempre houve nele esta inquietação de buscar corrigir os erros que havíamos cometido como nação. Nesse processo de redação da Constituição de 88, pude ver sua luta por esta redenção do País, junto com tantos grandes parlamentares, como Ulysses Guimarães, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso e outras grandes figuras que hoje nos fazem tanta falta no Parlamento. Além da luta por inserir na Constituição obrigações do Estado e direitos do cidadão que pudessem criar um caminho de justiça e redenção, vovô, do alto de sua oitava década, ainda fez um empolgante discurso, levando com ele o Parlamento a aprovar o direito de voto para os jovens de 16 anos.
Depois de tanto trabalho e tanta generosidade, vovô se foi, assim como se vai, de uma hora para outra, aos 83 anos, sem despedida, sem abraços, sem nada, fruto de um tombo em casa e de uma pequena hemorragia interna que, detectada tarde demais, o levou ao fim. Quando o carro funerário deixou seu casarão, na Rua Dona Mariana, as calçadas estavam apinhadas de vizinhos e admiradores aplaudindo a partida do seu Senador.
Mas vovô me voltou, e de forma moderníssima. Há sete anos, surfando a Internet, fui ao Facebook, e descobri que havia um setor no site para mensagens de pessoas desconhecidas do meu círculo de amigos. Ali havia a seguinte mensagem de Janete Gomes Teixeira: “Boa noite, meu nome é Janete, e hoje estou tomando conta de uma amiga, Alzira Nunes, cujo marido, José Augusto, trabalhou como motorista do seu avô Afonso Arinos. Em uma das muitas conversas que todos temos com ela, ela lembrou de você com muito carinho e pediu para vermos se conseguíamos te localizar. Se você for a pessoa que estou procurando, te peço o favor de me adicionar. Muito obrigada.”
Nos falamos por Facebook e fomos visitá-la em Divinópolis, minha mulher, Luise, minha filha, Luiza, e eu. Dessa visita nasceu um filminho onde meu avô reaparece com todo o seu brilho, sua generosidade e seu senso de justiça, e que fica fazendo parte deste pequeno testemunho.
http://leiaopalma.com/o-palma-em-video/alzira/
Se pudesse definir meu avô, diria que ele foi um homem que amou a humanidade. Este amor deixou sua marca no Brasil.
Cesário Mello Franco é roteirista, escritor, cervejeiro e desenhista.