No meio jornalístico, todo mundo está a se perguntar o porquê da saída repentina de Ali Kamel do comando do Jornalismo da Globo, o que já era sabido, mas divulgado só nesta terça (29/08) – repentina, para quem está de fora. Grandes decisões não são algo que se toma no ardor do momento – é para mudar de vida, por óbvio. “Muitos certamente gostariam de tomar essa decisão ao chegar aos 60 (Kamel tem 61), nem todos podem”, diz diretor da Globo à meia-voz.
É a vontade posta em ação, vide carta de Paulo Marinho, diretor-presidente da Globo. Kamel estava no comando do Jornalismo da empresa desde 2009, ou seja, há 34 anos, dos quais 22, na Globo. No posto, assume Ricardo Villela, até então diretor-executivo de Jornalismo, enquanto Kamel passa a coordenador do Conselho Editorial do Grupo Globo, presidido por João Roberto Marinho.
Segue a carta de Paulo Marinho, diretor-presidente da Globo e de Ali Kamel (para estudantes terem guardadas):
“Caras equipes,
Em julho do ano passado, Ali Kamel procurou a mim e ao João Roberto Marinho para falar de planos para o futuro. Após intensos 34 anos dedicados a funções executivas no Grupo Globo, 22 deles na Globo, disse que gostaria de desacelerar. Passada a surpresa inicial, já que Ali está no auge de sua capacidade de pensar jornalismo e gerir redações, procuramos entender suas motivações. Em primeiro lugar, o desejo de experimentar uma rotina diferente da exigida pelos desafios diários dos cargos de liderança em jornalismo. Ao Ali, nunca faltou entusiasmo pela profissão. Seu grau de comprometimento e dedicação sempre foi extremo, sua lista de realizações, enorme. Era natural que chegasse o dia em que desejasse mais tempo para outras atividades. Em segundo lugar, a certeza de ter desenvolvido profissionais capazes de seguir praticando um jornalismo baseado na pluralidade, isenção e busca pela apuração precisa dos fatos. Ali é um construtor de equipes. Tem uma rara capacidade de explanar cada movimento, sempre amparado em análise minuciosa de fatos e opiniões. E essa qualidade facilitou muito a elaboração de sua sucessão, da qual falaremos mais adiante.
Esta é, afinal, uma parceria difícil de abrir mão. Ali sempre foi um companheiro sereno, íntegro, decisivo. Ao longo dos últimos 22 anos, coordenou a cobertura de seis eleições presidenciais e cinco eleições municipais. Entre tantos projetos, como ‘Caravana JN’, ‘JN no Ar’, ‘O Brasil que eu quero para o futuro’ e ‘Brasil Em Constituição’, foi dele também, em 2002, a ideia ousada de entrevistar os candidatos à presidência durante o ‘Jornal Nacional’, algo até então inédito e que hoje se tornou um evento central, aguardado e muito esclarecedor das campanhas eleitorais. Em todos os grandes eventos, nacionais e internacionais, pudemos sempre contar com a certeza de que, com ele à frente, nosso jornalismo cobriria os fatos com a qualidade que desejamos.
Mas, quem conhece bem o Ali sabe que, de todas as coberturas nesses anos todos, a que lhe demandou mais, profissional e emocionalmente, foi a da pandemia. Justamente quando o jornalismo seria mais necessário e nossas equipes mais exigidas, as condições de trabalho impostas pela realidade eram as mais duras. Sob sua liderança, os telejornais cresceram de tamanho, um programa diário dedicado à pandemia foi criado do zero em 24 horas, o espaço do noticiário disparou. Colegas adoeceram. Em meio a tanto empenho de todas as equipes, Ali, além da minuciosa supervisão do trabalho jornalístico em si, passou a incluir duas novas tarefas em sua rotina. Diariamente, escrevia ou telefonava para os colegas doentes ou seus parentes em buscas de notícias de um a um. E, à noite, enviava a todos um relatório intitulado “Nossos colegas”, com um balanço transparente dos doentes e recuperados. Muitos colegas nossos se lembram com emoção desse gesto.
Após deixar a direção geral de Jornalismo da Globo, as atividades diárias e as funções executivas, Ali, a convite de João Roberto Marinho, assumirá a posição agora criada de Coordenador do Conselho Editorial do Grupo Globo. Numa conversa recente, João, que preside o Conselho com grande engajamento, resumiu assim sua decisão: “Trabalho junto com o Ali desde o início da década de 90, uma relação profissional de muita confiança e respeito. Ao convidá-lo para me ajudar no Conselho, minha ideia é continuar a contar com sua capacidade de reflexão e análise. Estou convencido que será muito positivo para todo o grupo.”
Para suceder ao Ali como diretor-geral de Jornalismo a partir de primeiro de janeiro de 2024, convidamos um companheiro que esteve ao lado dele nestes anos mais recentes. Ricardo Villela chegou à Globo em 2005, após dez anos de experiência no jornalismo impresso com passagens pelo ‘Jornal do Brasil’ e pelas revistas ‘Veja’ e ‘Playboy’. Foi editor de política, editor-executivo e editor-chefe do Jornal da Globo. Coordenou o ‘Jornal Nacional’ e chefiou a redação de São Paulo antes de assumir a direção de Jornalismo da Globo em Brasília. Como o Ali, viveu em Brasília algumas das coberturas mais relevantes de sua vida. Ali dirigia a redação de ‘O Globo’ na capital em 1992, no impeachment de Fernando Collor. Villela dirigiu a redação da Globo em Brasília durante os turbulentos anos de 2013 a 2018. Em 2019, transferiu-se para o Rio – e, desde 2021, tem ajudado Ali de perto como diretor-executivo de jornalismo.
Para o lugar de Villela, convidamos Miguel Athayde, diretor da GloboNews. Miguel é o que podemos chamar de prata da casa. É jornalista da Globo desde 1994. Foi produtor dos jornais locais do Rio, editor-executivo e editor-chefe do ‘Bom dia Brasil’. Em 2012, foi convidado a assumir a direção regional de jornalismo do Rio, posição em que comandou coberturas importantes como a preparação da cidade para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Desde 2018, Miguel dirige a GloboNews, onde liderou a cobertura das eleições no ano passado e ampliou a cobertura ao vivo para 20 horas diárias. Durante os próximos meses, Ali, Villela e Miguel trabalharão juntos na transição. Em meu nome e da minha família, agradeço ao Ali pelos anos de dedicação e empenho que tanto nos ajudaram a escrever a história da Globo até aqui. E desejo a ele, ao Villela e ao Miguel sucesso nas novas funções nos anos que estão por vir”.
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Carta de Ali Kamel:
“A todos vocês, com grande admiração.
Em 1982, participei da cobertura da Rádio Jornal do Brasil na apuração dos votos na primeira eleição para governador depois do golpe de 1964. Minha tarefa não exigia mais de mim do que ler os boletins de urna para alguém na redação usando um telefone público. Mas a simplicidade da missão não me impediu de viver a experiência com a mesma intensidade com que viveria o jornalismo nos anos seguintes. Vieram a Revista Afinal, a Revista Veja, o jornal O Globo, em 1989, e, desde 2001, a Globo. Ao longo dessa trajetória, nas mais diferentes funções, testemunhei os acontecimentos que marcaram o Brasil e o mundo com os olhos de um jornalista profissional, essa atividade que se mantém indispensável hoje como no passado, talvez mais.
À medida que os anos se passaram, nunca a vivi como um “velho homem de imprensa”, esse jargão que designa aquele que já não se surpreende mais com nada. Vivi tudo e ainda vivo com a postura daquele estagiário de 41 anos atrás: com curiosidade, empolgação, vontade de aprender e de acertar. E, talvez o mais importante, com a humildade de saber que o jornalismo é uma atividade coletiva, ninguém faz nada sozinho: o resultado do nosso trabalho será sempre melhor se muitos dele participarem.
No ano passado, ao completar 40 anos de profissão, decidi conversar com João Roberto Marinho, presidente do Conselho de Administração e do Conselho Editorial do Grupo Globo. Foi no dia 26 de julho – guardo a data porque foi um passo importante na minha vida, claro. Em seguida, conversei também com Paulo Marinho, diretor-presidente da Globo, com quem tenho tido o prazer de trabalhar desde que ele assumiu a posição. Eu disse a ambos a verdade: depois de muita reflexão, concluí que tinha chegado o momento de deixar as minhas atividades diárias que exerci e ainda exerço com grande entusiasmo. Em 1995, eu me tornei editor-chefe do Globo de onde saí como diretor-executivo. Cheguei aqui na Globo em 2001 como diretor-executivo de jornalismo para me tornar diretor geral de jornalismo em 2012. São muitos anos exercendo funções de grande responsabilidade, mesmo dividindo-as com equipes maravilhosas. Pesa, e muito, o desejo de ter mais tempo livre com minhas enteadas, Alice e Sofia, e ao lado de minha mulher, Patricia Kogut, com quem compartilho a vida há tanto tempo, ela própria já tendo desacelerado recentemente a sua vitoriosa carreira jornalística. Mas pesa também a consciência de que quase três décadas em funções de liderança são um tempo excessivo.
Ajudou na decisão o fato de o jornalismo da Globo contar com profissionais talentosíssimos e prontos para seguirem adiante. Foi com alegria que constatei haver um consenso irrestrito em torno de Ricardo Villela, que me sucederá, e de Miguel Athayde, que o sucederá. Para completar o novo time vitorioso, Vinícius Menezes, na GloboNews, e Márcio Sternick, na Editoria Rio.
João e Paulo foram muito generosos em nossas conversas e na avaliação do meu trabalho.
Eu me relaciono profissionalmente com João de forma mais direta desde 1991, quando ele liderou o seminário em Mangaratiba que deu o pontapé inicial a um processo ainda mais intenso de modernização do Globo. De lá para cá, foram anos de respeito mútuo, de comunhão de valores e de aprofundamento da convicção de que o jornalismo tem princípios que – se seguidos sem concessões – levam à busca da verdade e à produção de conhecimento. Sua crença na importância do jornalismo e a maneira serena de liderar, guiada sempre por valores, foram para mim mais do que uma inspiração: foram uma fonte de aprendizado. Não é preciso dizer da minha alegria quando ele me convidou para manter nossa parceria na condição de coordenador do Conselho Editorial, função que ele decidiu criar agora para auxiliá-lo na condução desse órgão. Vou procurar honrar esse convite.
Paulo entendeu também as minhas ponderações e foi acolhedor. Eu o conheci ainda quando deu os primeiros passos no Grupo Globo e o tenho acompanhado desde então, mais de perto desde que se tornou presidente-executivo da Globo, com grande liderança e competência. Só posso ser grato a ele, como a toda a família Marinho. Nesses anos todos, pude ver de perto que eles não abrem mão dos valores democráticos e não medem esforços pela cultura brasileira. Os hoje vice-presidentes do Conselho de Administração, Roberto Irineu Marinho, que liderou sempre de maneira inovadora o Grupo Globo até há pouco, assim como José Roberto Marinho, que tem no seu currículo a criação de uma potência como a CBN, sempre me prestigiaram com a sua confiança. O mesmo quero dizer de Roberto Marinho Neto, hoje diretor-presidente da Globo Ventures, com quem trabalhei de perto na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas de 2016 quando ele era diretor de projetos especiais do Esporte – ali pude constatar o executivo brilhante que é. Tenho a consciência de que foi no Grupo Globo que tive os meios, o ambiente, as oportunidades e a liberdade de me desenvolver profissionalmente. Ao João Roberto, ao Roberto Irineu, ao José Roberto, ao Paulo e ao Roberto Marinho Neto serei grato por toda a vida.
Termino agradecendo a todos os colegas, sem exceção, com quem trabalhei nessa trajetória tão longa. Todos, ao seu modo, foram marcantes: com eles aprendi, forjei minhas convicções nos princípios do bom jornalismo, ampliei meus horizontes. Cito alguns. Nos anos de formação na Rádio JB, Regina Bodstein, Carlos Grandin, Alceste Pinheiro e Ramiro Alves, morto tão jovem; Dorrit Harazim, na Veja; e Elizabeth Carvalho, na Afinal. No Globo, o mestre Evandro Carlos de Andrade, que nos deixou em 2001. E, claro, meu amigo e companheiro Merval Pereira. Cito também Rodolfo Fernandes e Jorge Bastos Moreno, que partiram de forma tão prematura, de quem me tornei amigo e com quem compartilhei tantas histórias e reportagens. Na Globo, concentro minhas homenagens em quatro pessoas queridas: Silvia Faria, Maria Thereza Pinheiro, a nossa Terezoca, e Carlos Henrique Schroder, com quem dividi grande parte da minha caminhada aqui. E William Bonner, companheiro de um mundo de coberturas. Citando-os, eu presto meu reconhecimento e gratidão a todos com quem convivi nesses anos maravilhosos de trabalho frutífero e bem-sucedido. O jornalismo da Globo é de excelência porque excelentes são seus profissionais. Todos eles, a quem agradeço agora.
Fico com vocês até 31 de dezembro com o mesmo entusiasmo de sempre. Depois, assumem Villela e Miguel, Vinícius e Sternick, esses craques, profissionais impecáveis, altamente preparados e que vocês conhecem tão bem.
Ao contrário do que eu costumava recomendar ao fim dos meus e-mails durante a pandemia, o período tão triste que atravessamos juntos numa cobertura histórica, eu me despeço com um beijo, um abraço e um aperto de mão.
Muito obrigado”.