Era uma vez uma menina que nasceu com muitos privilégios. Durante a infância e adolescência, morou em um bairro nobre do Rio. No apartamento onde vivia com a família (mãe, pai, irmãos), ocupava uma suíte cor-de-rosa, sua cor favorita. Frequentou boas escolas, aprendeu línguas, viajou. Era popular, estudiosa, sociável e interessada. Cresceu acreditando que poderia ser o que quisesse; desde cedo, dizia que ia ser jornalista.
Quando pisou pela primeira vez na faculdade que escolheu, um mundo se abriu — sensação que se repetiu, com maior intensidade, ao adentrar a redação do principal canal de notícias do Brasil, depois de passar na seleção de estágio. Rapidamente, seu universo de origem foi ficando pequeno para o anseio por descobertas, que não se limitavam ao âmbito profissional. Mergulhou no novo: pessoas, horizontes, realidades fora da bolha, ao passo que observava amigos e conhecidos de uma vida inteira seguirem o script social que também havia sido escrito pra ela, só que não cabia mais.
“E você? Casa quando?”, “Não tem medo de ficar sozinha?”, “Nossa, como você trabalha!”, “Por que nunca está presente nos eventos?”. Como se não bastasse o desconforto de não preencher os requisitos estabelecidos para uma jovem da sua idade dentro daquele nicho social, em determinado momento, ela compreendeu um não pertencimento ainda mais profundo: sua sexualidade.
De repente, um desvio irreparável de percurso. Para onde foi a menina dos olhos do começo da narrativa? Fora os estigmas internos de quem rompe a barreira do que é tido como “normal”, o mais cruel de não estar dentro do padrão heteronormativo é que, além de ter que contar que você não é o que esperam de você, ainda é preciso passar pelo crivo externo, que começa na família, dentro de casa, e pode ser pouquíssimo acolhedor — de menina-exemplo a problema, como se a própria compreensão de si já não fosse sofrida o suficiente.
A esta altura, não preciso mais explicar que a menina que nasceu cheia de privilégios e se viu à margem por causa da sua sexualidade sou eu, a autora deste texto, que, a partir de agora, será escrito em primeira pessoa.
Meu nome é Maíra Donnici. Sou uma mulher bissexual, casada há sete anos com uma mulher maravilhosa, com quem tenho uma filha de 4 anos. É assim que me apresento em qualquer lugar, para qualquer pessoa, não importa o meio. Só sei ser inteira se for assim. E não é isso que todo mundo quer? Ser quem é? Só que nem todo mundo pode. Eu nem sempre pude.
Ser essa pessoa livre para viver a vida que se desenhou pra mim aconteceu depois de anos de angústia, ansiedade, desamparo, culpa. Cheguei a ter depressão. Pois é, caro leitor, o armário é um lugar solitário e sombrio, de onde consegui sair graças ao privilégio de poder fazer análise e à sorte de ter encontrado um amor tão forte, que nada mais fazia sentido se não pudesse vivê-lo à luz do dia. A gente deu a mão e foi. Seguimos dando as mãos e indo, mesmo na adversidade. Hoje, minha liberdade é inegociável. Armário nunca mais! Você gostaria de viver sem poder ser quem é?
Aí veio a dupla maternidade. Se o mundo não está preparado para incluir pessoas não heterossexuais, duas mães e uma filha então!… “Mas e o pai? Quem é a mãe de verdade? Vocês vão contar pra ela?”. As perguntas, ora inocentes, ora invasivas, e julgamentos me levavam a um nocaute por dia. Foi durante a gravidez que decidi escrever sobre não aceitação, sobre preconceito e sobre a minha configuração familiar.
Compreendo que a situação é nova, no entanto, há um bocado de preconceito disfarçado de desinformação. Numa sociedade em que há seis milhões de pessoas sem pai no registro e que o homem, muitas vezes, é um estranho na criação dos seus filhos, essa obsessão pela falta da presença masculina me soa um pouco desmedida e, pra não dizer, hipócrita.
Criei um blog, um perfil no Instagram, me conectei a outras pessoas com histórias parecidas e comecei me tornar uma voz considerável na luta por um pouco mais de tolerância ao diferente. Estar do outro lado, ter a existência invalidada por ser quem é, foi e é sofrido, porém me presenteou com um olhar mais aguçado e empático sobre as variadas identidades e suas dores.
A essa altura, era urgente que eu aprofundasse o conhecimento para ter mais propriedade. Fui estudar, me conectei a mais vozes, projetos, empresas, causas e, naturalmente, entendi que queria recalcular a rota profissional também. A menina que queria ser jornalista virou uma editora, repórter e documentarista realizada e orgulhosa. Mas a mulher que me tornei precisava mudar.
Em junho deste ano, pedi demissão, depois de 17 anos de Globo e GloboNews, e fundei a Ser+Inclusiva, minha própria empresa de consultoria, letramento e produção de conteúdo em Diversidade e Inclusão. Felizmente, cada vez mais organizações, instituições e setores entenderam o valor das diferenças e a necessidade de se adaptarem para abrangê-las. Poder contribuir para isso tem sido uma experiência incrível.
Ainda existe um longo caminho, porém tenho encontrado uma demanda crescente por iniciativas de transformação. Uma vez aprendi que diversidade é chamar para a festa; inclusão, convidar para dançar. Que as festas recebam cada vez mais gente! E as pistas estejam lotadas. Todos ganham com isso.
Maíra Donnici é jornalista, especialista em diversidade e inclusão, ex-Globonews e fundadora do “Ser+ Inclusiva”, consultoria e produção de conteúdo em diversidade, equidade e inclusão. Também é palestrante e dá cursos para empresas, instituições, grupos de profissionais e pessoas que querem aprender mais sobre inclusão.