Estaríamos viciados em drama nas redes? Vítimas do assédio moral e das pessoas tóxicas, muitos assumiram o lugar de não mais exercitar qual comportamento seu suscitou reações ruins em suas relações. Com o dedo apontado para fora, como uma metralhadora, o bom-senso foi abandonado. Na surdina, com medo de ser “politicamente incorreto”, muitos apenas concordam com as denúncias, sem ao menos saber os fatos.
Existe o “eu digital”, aquele que dá voz a uma personagem e se baseia, para sua argumentação, no que é esperado que diga ao seu espectador. A confusão instalada é que uma parte das pessoas tem um limite melhor de suas posturas digitais, e a outra passa a acreditar na própria fantasia. A verdade virou propriedade de cada um, com tons de perversidade e, mesmo, completo devaneio. Está permitido compartilhar, visualizar e participar da intimidade, com todos os direitos de uma boa audiência.
Empreendedores de si próprio, com narrativas de dor e superação, transformam o sofrimento em mercadoria e espetáculo. O perigo flerta com aqueles que, perdidos, passam a acreditar numa comunidade que não será fiel caso a pipoca acabe. Criadores de conteúdo digital que baseiam seu produto na sua história de dor, por muitas vezes, se veem presos a não poder, simplesmente, mudar de ideia. Precisam, ali, persistir, narrando suas tragédias particulares para poderem garantir a empatia e o ganha-pão.
Se perco o emprego, meu discurso será de gratidão e da curva de trajetória dentro da companhia. Meu cachorro morre, aí lá vou eu fazer meu conteúdo de luto. Finalmente consegui fazer uma corrida, não perco a oportunidade de mostrar meu lado saudável. Há os que preferem mostrar sua fragilidade e desamparo, sem filtro algum. Consumimos a privacidade, queremos ficção e não nos importa que aquilo seja apenas um bom “storytelling” para engajar as pessoas com nossas vidas ou opiniões. Ninguém está imune. Você já postou algo para ganhar alguma validação? Eu, sim e acredito que você também. Então, gritamos que não vamos aderir às danças do TikTok, mas, “não mais que de repente”, estamos ali construindo um conteúdo que possa “levar” um pouco de nós. O perigo está quando passa a se acreditar no produto que você criou de si mesmo. Sem guia de instrução, a vida digital para alguns se tornou uma forma de sobrevivência, sem tréguas – preciso me posicionar para demonstrar minha prova social. Com alergia ao tédio, entregues ao conteúdo viral, denunciamos nossa falta de paciência para o que não dá gatilhos.
Quero ser instigado a todo momento e já não me sinto provocado por nada; na dependência química, esse é o efeito da tolerância. Precisa-se cada vez de doses maiores para se obter algum efeito. No entanto, roleta-se o “feed”, e só há uma única sensação, muito pouco prazer, mas, sem pensar e com voracidade, voltamos a nos entregar à volúpia de nada pensar. Relaxando nas redes, sem nenhuma bússola, descubro que já faço parte do show. Fisgados por uma imersão viciante, sinto saudades de conversar, mas me sinto sem paciência para falar. Sem necessidade de pensar, mais uma vez, assisto aos dramas de cada um e me permito, mais uma vez, pausar minha existência.
No campo científico, os nomes dados ao problema são uso problemático da Internet, em que se prejudicam as decisões da rotina, com maior tendência para decisões, sem pensar e mesmo alterações da forma de se perceber e pensar (1), decorrentes do uso compulsivo da conexão/desconexão de si. Estima-se que até 7,02 % da população mundial (2) tenha um uso compulsivo dos seus dispositivos eletrônicos.
Quando acordo, percebo que já se foram 30 minutos de um nada voraz. Amordaçado pelo vício, sucumbo resistindo. Vou ali carregar o celular e, quem sabe, poder voltar a ter-me.
1. Müller SM, Antons S, Wegmann E, Ioannidis K, King DL, Potenza MN, et al. A systematic review and meta-analysis of risky decision-making in specific domains of problematic use of the internet: Evidence across different decision-making tasks. Neuroscience & Biobehavioral Reviews.
2.Pan Y-C, Chiu Y-C, Lin Y-H. Systematic review and meta-analysis of epidemiology of internet addiction. Neuroscience & Biobehavioral Reviews.
Maria Francisca Mauro é psiquiatra, mestre pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB) e integrante da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Atua na Psiquiatria clínica desde 2008, tendo experiência em pacientes com quadros graves de depressão, ansiedade, alterações de comportamento alimentar, transtorno bipolar do humor e esquizofrenia. É criadora do Portal da Mente.