Ver Elis Regina, com 20 e poucos anos, contracenando com Maria Rita, de mais de 40, me causou o mesmo estranhamento de quando, no grupo escolar, insistiam que D. Pedro II, olhar cansado e longas barbas brancas, era filho do jovem de negra cabeleira e olhos decididos, o Pedro I.
Devia haver ali algum engano. Os velhos eram pais dos jovens, como meu avô o era do meu pai, e o meu pai, de mim — não o contrário.
Mas isso foi antes de Machado de Assis ensinar que “O menino é o pai do homem”.
Ver a jovem Elis ultrapassando, numa velha Kombi, o carro elétrico dirigido pela filha me pareceu uma metáfora não intencional.
Imaginei-a cantando não que ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais, mas que não confia em ninguém com mais de 30 anos.
Elis morreu com 36. Tinha mais de 30 cruzeiros, 30 vestidos, 30 conselhos. Tivesse tido mais 30 minutos para dirigir sua vida, naquela madrugada de 19 de janeiro de 1982, estaria, aos 78 anos, fazendo anúncio de Kombi, por mais de 30 reais?
Talvez, mas com um sorriso que prende, inebria, entontece — embriagada, quem sabe, de uísque com guaraná. Reclamaria que há muita patrulha, muita bagunça; que, pra variar, estamos em guerra.
Faria o anúncio, não numa reta, mas nas curvas da estrada de Santos — tentando esquecer os amores que teve e viu, pelo espelho, na distância se perderem.
Não com sol a pino, mas vendo o dia, pouco a pouco entardecer — chegando a hora de ir pro quarto e escutar as coisas lindas que algum novo compositor começaria a lhe dizer.
Sem saber rezar, talvez só quisesse mostrar seu olhar, seu olhar, seu olhar. Olharia para cada um de nós, e seu olhar seria de adeus — adorando a vida pelo avesso, sem saber se ela era um mistério profundo, o fundo do poço, o fim do caminho ou uma promessa no seu coração.
Na hora em que acelera, pediria: me ensina a cantar; eu vim de tanta desgraça, mas muito eu te posso ensinar. E ensinaria a misturar dor e alegria, com aquela estranha mania de ter fé na vida.
Trazer Elis a 2023 e colocá-la numa Kombi é, de certa forma, mantê-la presa ao passado. A inteligência artificial há de poder mais do que isso.
Aguardo o lançamento não de uma fita cassete, de um LP ou de um CD dos seus maiores sucessos, mas, diretamente nas plataformas digitais, Elis cantando “Beatriz” (Chico e Edu Lobo), “O silêncio das estrelas” (Lenine e Dudu Falcão), “Pelos ares” (Adriana Calcanhotto), “Resposta ao tempo” (Cristóvão Bastos e Aldir Blanc) — coisas que ela nunca teve a oportunidade de gravar. Elis descobrindo / reinventando autores, como fez com Milton Nascimento, João Bosco, Belchior. Elis, qual Nana Caymmi, dizendo o que pensa sem pensar nas consequências, e desafinando o coro dos contentes. Elis revisitando tesouros, como fez com Manzanero, Adoniram, Louzada, Lupicínio, Ary. Elis com um songbook — só canções de Rita Lee, já pensou? Elis dividindo vocais com Alcione, Zé Renato, Céu e gente de quem nunca ouvimos falar, porque Elis é que as apresentaria a nós.
I.A. que é I.A. um dia deixará o passado para trás, e nos trará a Elis que poderia ter sido, e não foi. Uma Elis do tamanho da paz, tendo somente a certeza dos limites do corpo — e nada mais. Porque nunca, jamais se viu uma cantora assim.