Há quem, na hora de dormir, tenha um ritual de desaceleração: banho morno, ambiente à meia luz, gotas de lavanda no travesseiro, exercício de respiração. Por vezes, uma leitura leve, para limpar a mente. E então Morfeu abre os braços e traz a pessoa relaxada, em três minutos, para os seus domínios.
Eu também tenho ritual: o banho morno, o fechamento de portas e janelas para tentar (em vão) bloquear o barulho dos vizinhos do prédio em frente; o ar condicionado no máximo (para tentar, em vão, abafar a televisão do vizinho de baixo); os plugues de cera no ouvido (para, em vão, tentar não ouvir a vizinha do lado); e o aparelho emissor de ruído branco ligado quase no limite (para que a vizinha de cima possa recolocar no lugar, à noite, os móveis que arrastou o dia inteiro). Então o Rivotril me fecha os olhos e em menos de uma hora, zzzzzz, Tião e Duda já estão dormindo profundamente, e eu faço o que posso para conseguir posição na cama.
Desse aparato todo, o mais importante é o emissor de ruído branco. Equivale a uma turbina de 777 ligada em modo decolagem. Mas é uma escolha minha: há um seletor que permite ouvir pios de pássaros (dá vontade de ter um estilingue), gotas de chuva no telhado (tortura chinesa perde), riacho correndo entre pedras (difícil segurar a vontade de fazer xixi). Não, vamos de turbina, mesmo.
Ruído branco segue o mesmo princípio da vacina e da homeopatia: é um barulho incômodo usado para combater barulhos igualmente incômodos. Em teoria, diminui a capacidade de o córtex cerebral ser ativado. Não é que relaxe: irrita menos. Funciona como redução de danos: se é pra perturbar, que seja uma perturbação que eu mesmo escolhi.
Para trabalhar, essa parafernália toda incomoda um pouco. Mas descobri no Youtube uma série de áudios de ruídos brancos um pouco menos parecidos com turbina de avião ou chuvisco de televisão. E a quantidade de canais que oferecem esse apanágio para os que, como eu, vivem numa ininterrupta micareta, num eterno cruzeiro do Wesley Safadão, é sinal que não estou sozinho na minha misofonia.
Outro dia, comprei um novo fone de ouvido, com cancelamento de ruído. Não acreditei que fosse à prova de Barra da Tijuca – mas é. Ou quase. E, junto com ele, encontrei um monte de outros recursos no Spotify, que ampliaram consideravelmente a trilha sonora dos meus dias.
Por acaso, topei com o ruído negro.
Não, não é que o ruído branco seja racista, e ao ouvir o ruído negro estejamos amortizando a dívida histórica sonora: o ruído negro é um som baixo, de frequência quase inaudível. É o próprio som do silêncio (nota mental: pesquisar se Simon & Garfunkel recebem direitos autorais). Lembra um boi com faringite, entoando canto gregoriano – ou eu fazendo “poeira sonora” no coral da AABB. (Sim, eu queria ser barítono ou tenor, mas sou baixo, aquele que muge para dentro, enquanto os outros cantam.)
Ruído negro, mesmo em volume alto, não foi suficiente. Tentei o ruído rosa.
O Barbie noise é algo entre o ruído branco e o zumbido. Parece barulho de ar condicionado, sabe como? Dizem que ajuda a estabilizar o sono. Não ajudou a trabalhar.
Parti para o ruído verde. Um mix de sons da natureza, vento, chuva, cachoeiras e cascatas. Me senti em Mauá, Sana, Lumiar. Muito bicho-grilo pro meu gosto.
Azul foi a próxima escala. Sem chance. Imagine um jogo de pega-vareta, com mil agulhas de vidro despencando (sem parar) num chão de porcelanato, de madrugada. Um chuveiro (de água fria) espirrando no azulejo de um banheiro vazio, em julho, às 6h da manhã, em Curitiba.
Deve haver outros (cinza, laranja, roxo, magenta), mas parei no seguinte – o ruído marrom. Ali me senti em casa. Pode ser mera inferência sinestésica, mas o ruído marrom tem um quê de café quente, de chocolate belga (daqueles que a gente compra no Free Shop, porque no mundo real eles custam um rim e meio). É um ruído macio, aconchegante. Tipo dormir de conchinha, mas sem os desconfortos do braço dormente e de cabelo entrando nas narinas.
Ainda não encontrei um emissor de ruído marrom para ligar na cabeceira da cama, mas tenho trabalhado com esse som acolchoado, veludoso. Que, se fosse um cachorro, seria um labrador. Um dia da semana, uma quinta-feira. Um mês, outubro. Um poeta, Drummond.
(Ok, o poeta seria o Quintana, a Adélia Prado: Drummond aqui é uma rima, não uma solução.)
Ainda tenho a esperança de que inventem um ruído listrado, que abafe tanto o (infatigável) cortador de grama quanto os gritos (esganiçados) do professor de tênis. Um ruído xadrez, para neutralizar a Kombi (etarista) que compra máquina de lavar velha, a maquita da obra (interminável) alguns andares acima e os palavrões (impublicáveis) da horda de adolescentes na quadra. Um ruído que vá do infravermelho ao ultravioleta – ida e volta! – único capaz de dar conta do recado nesta cacofonia miserável.