A primeira vez que vi o Zé, ele estava no palco. Foi no dia 30 de dezembro de 1987, na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. A praça estava lotada de artistas e pessoas LGBT+. Mas não se tratava de um espetáculo. Zé celebrava a missa de sétimo dia do seu irmão, o também diretor teatral Luís Antônio Martinez Corrêa, morto uma semana antes com 107 facadas, vítima de homofobia. Àquela altura, eu já sabia quem era o Zé. Foi a Dina Sfat quem me falou do Zé e de seus feitos. Os olhos dela brilhavam quando falava da importância da sua obra. Me falou do Teatro Oficina (@oficinauzynauzona), dos espetáculos que marcaram época, como “Pequenos Burgueses”, “Na Selva das Cidades” e “O Rei da Vela”, onde ousou colocar o Brasil em cena, promovendo assim uma revolução na cultura das artes do Brasil, onde ela dividia a cena com outro gênio, Renato Borghi. O ator Sebastião Lemos me contou que estava na estreia, sentado ao lado do Caetano Veloso, que por sua vez, teria dito: “Presta atenção, que a história do teatro brasileiro está mudando diante dos nossos olhos”.
1987 foi um ano estranho. Experimentávamos os primeiros momentos de um País que começava a se livrar da ditadura, mas ainda era necessário submeter os espetáculos à censura federal. Ditadura contra a qual Zé lutou bravamente. Não esqueçamos que uma das apresentações de “Roda Viva” terminou com o teatro sendo invadido pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas), que de forma democrática, distribuiu porrada em todo o elenco. “Eu não sabia o que era CCC e muito menos por que estava apanhando”, dizia a Marília Pêra. Por um lado, os militares voltavam pro quartel. Por outro, víamos crescer uma onda reacionária e violenta, que nos culpava pela epidemia de uma doença sobre a qual sabia-se muito pouco, a AIDS. E foi assim, nos estertores de 1987, que testemunhei pela primeira vez a potência do Zé, que nos conduziu a uma catarse e liberou o grito que estava preso na garganta.
No final dos anos 1990, comecei a frequentar o Teatro Oficina, desde que a Camila Mota entrou para a Cia e mudou-se para São Paulo. Acompanhei de perto e apoiei algumas montagens memoráveis, como “Cacilda!”, “Boca de Ouro”, “As Bacantes” e “Os Sertões”. Uma coisa, porém, sempre me chamou a atenção. Pessoas como o Zé são muito frequentemente retratadas de forma histriônica, caricata. Zé lutou por décadas pela revitalização do Bairro do Bixiga, em defesa de um projeto urbanístico capaz de levar mais qualidade de vida para a região e contra a especulação do apresentador Silvio Santos, que despreza a importância do Oficina para a cultura e para a comunidade local. Apesar da grandeza da causa, Zé foi muitas vezes retratado como um velhinho porralouca que atrapalhava os planos do dono do baú.
Foi durante a apresentação especial de “As Bacantes”, em comemoração aos seus 80 anos, que me veio o desejo de retratá-lo em filme. Eu queria fugir da caricatura e mostrar o Zé que eu conhecia: sábio, inquieto, contestador, libertário, elegante, debochado, visionário, generoso. Ele confiou em mim e se entregou, e assim nasceu “Fédro” (@fedrofilme). Qual não foi a minha alegria ao vê-lo numa chamada de vídeo, 48 horas depois de ter mandado a versão final do filme para ele. “Sebá, eu achei que nós não tínhamos um filme, mas nós temos. Temos um grande filme. Parabéns, diretor!”. Terça-feira passada, a perplexidade tomou conta de mim ao receber a notícia do incêndio. 53% do corpo queimado e ouço a voz de Zé no meu filme, dizendo coisas como “Eu fui torturado. Eu jurei pra mim mesmo que o meu corpo jamais seria maltratado outra vez” ou “A vida é a vida! A vida é trágica!”. Foram dois dias angustiantes até que na manhã de quinta, o Zé voltou pra natureza. O meu raciocínio ainda está embaralhado. Neste momento me faltam palavras. O Zé trabalhava num ritmo insano. Se dizia capaz de cultivar o ócio. Ou melhor, “o cio”. Deixou tudo encaminhado no Oficina, que fica sob direção de dois nomes gigantes do Oficina: Marcelo Drumond e Camila Mota. Eles saberão cuidar do legado do Zé e imprimir suas marcas, como deve ser. O Oficina, a exemplo do seu criador, é matéria viva e (re)existindo, resiste. Evoé, Zé!
O carioca Marcelo Sebá é roteirista e diretor. Lançou “Fédro”, em 2021, doc que registra o reencontro entre o ator Reynaldo Gianecchini e seu mentor, o diretor José Celso Martinez Corrêa, para a primeira leitura do diálogo “Fedro”, de Platão. Gianecchini estreou no Teatro Oficina em 1999, na peça “Cacilda!” e, no mesmo ano, fez “Boca de Ouro”, ambas dirigidas por Zé. Pouco tempo depois, o ator começou a carreira de sucesso na TV e se afastou do Oficina. Hoje, a produção está no catálogo do Star+.