Aqueles dias foram marcados por tal efervescência, política e social; pela intensidade dos laços construídos em meio às chamas e às barricadas; pelas separações que precipitaram ou encontros que permitiram; pela perenidade da repercussão dos seus efeitos, que não haveria palavra mais adequada para nos referirmos a eles do que “febris” — não só pela paixão que nos acompanhava a todos nas ruas, como também pela sensibilidade aguçada a ponto de fazer a realidade confundir-se com o delírio, diante de cenas impensáveis outrora.
Para ficarmos apenas no seu epicentro (a semana de 13 a 20 de junho), imagens icônicas, como a da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) tomada a “pedra e pau” pelos manifestantes; das pessoas feridas com bala de borracha no rosto, ensanguentadas na frente do Banco do Brasil; da enquete num programa policial de baixos instintos que, por ampla maioria, disse apoiar “protestos com baderna”; do Caveirão — símbolo maior do massacre do povo preto e pobre nas favelas — tendo que recuar sob a resistência de jovens encapuzados na Avenida Presidente Vargas, como se a corda, num dia excepcional, se recusasse a arrebentar do lado mais fraco. Na minha opinião, de todas as grandes imagens produzidas àquela época, esta é a mais significativa.
Em geral, é arriscado participar de um acontecimento e dizer, por antecipação, ser ele “histórico”, pois a vontade, ainda que possa muito, não pode tudo: ela jamais suplantará o que é fundamental nesta categoria, qual seja, a sobrevivência ao tempo. É claro que, diante dos episódios acima descritos — e milhares e milhões de outros, até a mínima célula social —, todos nós tínhamos a intuição de que se tratava de momentos extraordinários da vida brasileira. No entanto, essa intuição só se converteu em certeza à medida que se passavam os anos e eu errava (creio que muitos de nós errávamos) ao “cravar”, diante de uma greve, de um escândalo, de uma crise — e elas foram demasiadas desde então —, que logo aquela onda avassaladora iria se repetir. Pelo negativo, ficaram mais evidentes a raridade, a importância e a magnitude das jornadas.
Não se diz com isso que aqueles episódios pertencem ao passado, mas apenas que, desde então, os protestos se espraiaram pela sociedade; interessaram-se por política os milhões que antes se mantinham à margem, desinteressados; revolveram o solo encharcado de sangue pisado. O que antes se fazia às escondidas, faz-se hoje à luz do dia, inclusive o que há de pior em nossa sociedade. Se os detratores acusam junho de 2013 de ser o responsável pela exacerbação dos nossos conflitos sociais, seus defensores devem aceitar de bom grado essa “acusação” e indagar: seria melhor que não tivéssemos lutado? Serão melhores a despolitização e a apatia? Junho de 2013 é tão responsável pela emergência da extrema-direita quanto as manifestações do ano de 1968 pelo AI-5, e aqui não vai nenhuma ironia. Se os de baixo nada fizessem, os de cima não precisariam usar da repressão, e viveríamos todos numa Pax Romana eternizada.
Dizer que a Alerj infestada de “milicianos”, o Caveirão e os assassinos do Amarildo — caso que só alcançou repercussão porque foi levantado pela juventude nas ruas — é que eram o lado da “democracia”, e os seus contestadores, não raro adolescentes pobres de bermudas e chinelos, com camisas de escolas públicas no rosto, eram o lado do “fascismo”, revela muito sobre a visão aristocrática, seletiva e hipócrita dos senhores liberais burgueses. Para eles, nada pode ser pior, e mais perigoso, do que o fato do “populacho” intervir na política, do seu jeito. Em última instância, se obrigados a escolher entre o poder popular e um golpe militar, eles tapam os narizes e vão de golpe mesmo. Compare-se o tratamento dispensado aos manifestantes de junho de 2013 com o oferecido aos defensores do impeachment e da Lava-Jato em 2015 e 2016, ou dos golpistas de 2019 a 2023 — até a inflexão de 8 de janeiro — e se verá a falsidade completa daquela tese.
Uma vez que a relevância do tema parece indiscutível, “por onde contar esta história?” era a próxima pergunta a que se deveria responder. Pergunta difícil, porque junho de 2013 é algo muito, muito grande. Pareceu-me mais adequado falar do calor das horas, quando milhões de pessoas marcharam em quase todas as cidades do Brasil e, nas capitais, em quase todos os bairros (aqui no Rio, pela primeira vez, desde que foi inaugurado, o Barra Shopping fechou suas portas no meio do expediente, com medo de uma “invasão de manifestantes” vindos da Cidade de Deus). Essa opção abria infinitas possibilidades narrativas e salvava o autor do complicadíssimo problema que seria abordar os momentos posteriores, quando, passada a crista da onda, bem menor era o espectro de pessoas envolvidas. Como disse o mestre Graciliano Ramos em “Memórias do Cárcere”, não há nada mais difícil do que falar de personagens vivos… Assim, “Junho Febril” funciona como um diário daqueles dias, de 31 de maio a 30 de junho, data da final da Copa das Confederações no Maracanã.
Por fim: como contar? Quis narrar aqueles eventos a partir da experiência de três personagens que me parecem modelos ideal-típicos dos que se envolveram de corpo e alma nas mobilizações. Navalha, um jovem morador do Jacarezinho, espécie de revolta personificada; Flávia, ou Ventania, uma artista que ganha a vida cantando em vagões e praças, à espera da oportunidade para alçar voos maiores; Apê, um estudante de Direito, filho de advogados, que acredita, como os seus pais, que o Brasil, enfim, está progredindo. Todos eles terão suas convicções, esperanças e frustrações postas à prova naqueles dias, assim como o pequeno universo de astros menores que orbitam ao seu redor, universo que se amplia à medida que o movimento nas ruas cresce. Assim, é como se Junho de 2013 falasse por si mesmo (o que não esgota o conjunto de visões possíveis sobre o tema, nem foi a pretensão do livro, é claro). O próprio encontro, fortuito, lá pelas tantas, de Navalha, Flávia e Apê — bastante improvável em qualquer outro contexto — funciona como um dínamo que dispara novas tensões e reflete luminosidade sobre áreas antes cinzentas de cada um deles. Como dizia K. Marx, a “autotransformação ocorre enquanto o homem se esforça por fazer mudarem as circunstâncias”. Se o leitor partilhar ao menos algum daqueles conflitos, ou alegrias, já o trabalho não terá sido em vão.
Igor Mendes é professor de Geografia e escritor, que acaba de lançar “Junho Febril”, seu terceiro livro. Antes, publicou “A pequena prisão” (N-1 Edições, 2017) e “Esta indescritível liberdade” (Faria e Silva, 2020, finalista do Prêmio Jabuti). Ele participou das manifestações populares de junho de 2013 e ficou preso por sete meses no ano seguinte, quando foi acusado injustamente de “formação de quadrilha” pelo seu ativismo nos protestos. “Um processo considerado totalmente absurdo quando chegou a Brasília”, relembra.